Fome de cidadania

Podia ser melhor?

“A multidão come pelas bordas, com paciência e moderação, devagar e sempre, mas a fome destas gentes é insaciável.”

–Daniel Aarão Reis, em O Globo (7 set., 2010)

A presidência do Lula tem sido de grande auxílio à cidade do Rio de Janeiro, já que ele, o governador e o prefeito se dão bem, e que seu governo apoiou a exitosa candidatura municipal para as Olimpíadas de 2016. Depois de décadas de mal com o resto do país, isso em si já é uma notícia estrondosa para a ex-capital do Brasil.

Mas um artigo no Globo da semana passada http://arquivoglobo.globo.com/pesquisa/texto_gratis.asp?codigo=4377152 sugere que Lula pode deixar uma marca maior do que pensamos na cidade maravilhosa.

Com a enorme vantagem da Dilma nas pesquisas de opinião (ela tem mais de 50%, enquanto Serra está com menos de 30%), fica claro que a classe popular pretende votar com o bolso – apesar de Dilma nunca ter se candidatado a um cargo público. Mas como o professor de história contemporânea da UFF, Daniel Aarão Reis escreve em “Uma grande inversão”, existe algo mais profundo na surpreendente capacidade do Lula para eleger esta sucessora inexperiente:

“[…] o acesso progressivo das classes populares à cidadania. Lula é a expressão maior disso. Ele é visto como o político que promoveu como ninguém este acesso. Isto tem a ver com bens materiais, sem dúvida. Mas há outros bens, simbólicos, mais importantes que o pão nosso de cada dia. E é isto que as direitas raivosas e as esquerdas radicais não percebem. As pessoas comuns, desde os anos 1980, e cada vez mais, começaram a achar graça nas instituições e nas lutas institucionais. Política, assunto de brancos ricos, começou a ser também de pardos, negros, índios e brancos pobres.”

Reis assinala que em 1964 o acesso à política fazia parte da agenda nacional. “Entretanto,” ele escreve, “os movimentos populares queriam muito e muito rápido. Não deu. Veio o golpe, paralisou e reverteu o processo.”

Tudo mudou agora, ele diz. “Quando as pessoas comuns compreendem os benefícios da democracia, querem para elas também. É raso imaginar que tudo se esgota no pão […] Querem jogar o jogo político como gente grande, como antes só os brancos ricos faziam. Uma grande inversão.”

A maneira de as pessoas grandes jogarem o jogo político até agora no Brasil deixa muito a desejar. O governo do Lula tem sido frequentemente acusado de corrupção ou de outros comportamentos questionáveis; a hora política na televisão é mais um passatempo cômico do que uma chance para avaliar plataformas e posições. Em São Paulo, o palhaço Tiririca é candidato a deputado federal http://www.tiririca2222.com.br/. O lema dele é “Pior que tá não fica”—e talvez ele tenha razão.

O jogo político certamente precisa de jogadores, juízes, torcedores e um público geral de maior qualidade. Uma política mais inteligente requer mais educação, e Lula não tem gasto o suficiente nisso. O estado do Rio de Janeiro foi líder em número de candidatos investigados pela Polícia Federal por fraude eleitoral entre 2006 e 2008, de acordo com O Globo.

Contudo, um aspecto da política, como nosso vizinho Chávez tão sabiamente já observou, é o acesso à informação. E isso está crescendo no Brasil, sem dúvida: os novos integrantes da classe média compram a granel televisores, computadores e assinam TV a cabo. O Globo informa que dos 63 milhões de passageiros estimados a voar no país neste ano – um recorde — cerca de 10% estarão no ar pela primeira vez na vida.

Nada como assistir a Big Bang Theory para descobrir que saber é poder.

Se Lula é a expressão institucional de um tsunami marcada há muito, ou o líder de uma tendência de inclusão social, não importa. O que sabemos, sim, é que a transformação do Rio de Janeiro eletrizou o mercado imobiliário, até nas favelas; seduziu investidores; abriu caminho para o aumento de salários e criou empregos. E, como Reis nos conta, as pessoas não vivem apenas de pão: os cariocas estão gozando de menos paranoia, mais liberdade para andar na cidade e de percepções mais abrangentes das vidas dos outros. Pode ser um ambiente saudável para a cidadania.

A grande inversão vai vingar? “Veremos,” escreve Reis. “Mas uma coisa é certa: não vai ser tão fácil deter essa onda.” O que pode ser verdade não apenas para a política nacional, mas também para as crescentes conexões entre as favelas do Rio e o resto da cidade.

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About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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