Seminário Cidades Futuros Possíveis, na Casa de Rui Barbosa, 9-11 de agosto, 2011
Reflexões instigantes de dois dos atores e pensadores mais importantes da integração da cidade, na mesa Diferenças, Modos de Lidar
Silvia Ramos, especialista em assuntos de policiamento, é pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Candido Mendes. Ela trabalhou com Ricardo Henriques na primeira incarnação da UPP Social, quando ainda estava no âmbito estadual. Disse ontem que chegou a hora dos cariocas se posarem uma pergunta dificílima– com desdobramentos sérios para o presente e o futuro.
- “O que aconteceu? Nunca paramos para nos fazer essa pergunta sobre as favelas. Os alemães ainda fazem isso, sobre o Nazismo. Nos anos 80, grupos ilegais e armados, sejam traficantes ou milicianos, chegaram nas favelas. Isso cresceu muito nos anos 90. Tivemos as chacinas de Vigário Geral e da Candelária, o Viva Rio surgiu depois. O pior foi a década passada, depois de 1999, quando Luiz Eduardo Soares esteve na Secretaria Estadual de Segurança. Foi no começo do governo Lula, que tomou posse em 2003. Traçamos uma linha imaginária e deixamos as coisas acontecerem. Isso não aconteceu longe, aconteceu aqui dentro, em Ipanema, Botafogo. Na década passada, tivemos 26 mil pessoas assassinadas na cidade do Rio de Janeiro, 6.800 assassinadas pela polícia. Na grande Rio, foram 67 mil assassinatos, 10 mil pela polícia. A grande maioria foi de jovens negros das favelas. Entre 2008 e 2009, a taxa anual de homicídio no Brasil foi de 25 por 100 mil habitantes. Entre a população de jovens negros de favelas, a taxa foi de 400 por 100 mil. Luiz Eduardo Soares chama isso de genocídio. A gente se acostumou a viver com esses dois mundos. Tínhamos duas cidades.”
- De acordo com Ramos, é desta realidade que as UPPs, que tomaram vulto em 2009, se tratam. “Trata-se de direitos humanos, liberdade, vida normal de cidade.”
- “Como que a gente permitiu isso? Quando eu dou palestras fora do Brasil, a pergunta que me fazem sempre é ‘Porque vocês não fizeram isso antes?’ O que é a UPP? É o velho e bom policiamento comunitário. Hoje, 18 UPPs estão em 30 favelas que englobam 280 mil pessoas, com um efetivo de 3 mil policiais.
- “Joaquim Nabuco disse que teríamos 200 anos de legado da escravidão. Vemos agora um legado muito forte dos anos quando as favelas tinham seus donos, que mandavam em todo mundo, quando as mulheres transgressores tinham que raspar a cabeça, o que era uma etapa antes de cortar a cabeça. Há muitas fofocas, rumores. Nas favelas com UPP, ainda há troca de comando. Sai alguém da prisão, a sentença já completa, e vem morar na favela. Os moradores aí dizem que a favela mudou de facção. Mas como, perguntamos, se há UPP? ‘E tudo na sugestão,’ eles explicam.”
- “O problema das favelas não é problema do estado. Não deve ser da UPP Social.” É de todos, diz Ramos. “O certo vai ser quando a Habib’s faz uma lanchonete na favela, e é a própria empresa quem arruma a rua em frente.”
Outro palestrante na mesma mesa foi Ricardo Henriques, economista que formulou o programa federal Bolsa Família. Atual presidente do Instituto Pereira Passos, Henriques liderou o início da UPP Social em abril 2010, atualmente abrigado no Instituto. O IPP tem responsabilidade pelo planejamento estratégico da cidade e uma variedade de tarefas técnicas no âmbito das políticas públicas do Rio de Janeiro.
Do mesmo jeito que moradores de favelas UPP supoem que ainda existam “donos”, que trocam de comando, ninguém na favela do Morro do Borel utiliza uma rua larga que a liga uma parte do morro a outra. “Todo mundo desce, pega a Rua São Miguel, e sobe de novo,” disse Henriques. “É porque antes da UPP, o tráfico proibia a passagem.”
Ele levantou o paradoxo central do Rio de Janeiro, de ser simultaneamente uma cidade partida e uma cidade de encontros.
Poucas cidades vivem esse paradoxo. Talvez os encontros sejam o resultado não apenas de necessidades práticas (mão de obra, emprego) mas também das compensações desenvolvidas por ambos os lados do abismo socioeconômico e cultural, para conseguir conviver com ele.
Hoje, com a possibilidade de uma redução de desigualdade e das divisões da cidade, o futuro desse fenômeno não está claro.
Mas no momento atual, Henriques diz que é imprescindível contar com o outro. “Você precisa de diálogo, para trazer o diferente e reduzir a desigualdade,” ele ensinou. Eis a filosofia da “escuta forte” que a UPP Social pratica, para daí chegar em resultados.
A visão do futuro que Henriques traçou é outro paradoxo: uma “utopia pragmática dos encontros, que quebre fronteiras materiais e simbólicas.” Este tensionamento, ele acrescenta, “produz uma cidade integrada e sustentável”, que conta com um capital raríssimo e subestimado– 52% do território urbano ocupado pela natureza. “Apenas 4% da cidade é favela,” ressaltou.
Diálogo houve, no seminário. Um jovem morador de favela UPP reclamou de ter sido revistado oito vezes. Contou de uma família vizinha cujo aluguel subiu tanto depois da pacificação que o filho de 14 anos teve que arrumar emprego. Relatou o êxodo de moradores para bairros distantes, por conta de remoções.
Uma gestora de UPP Social no Morro da Providência descreveu sua dificuldade em lidar com as mais de 900 remoções decorrentes do programa de urbanização Morar Carioca. Disse que os comerciantes reclamam porque há menos festas na comunidade, já que os policiais controlam os eventos que utilizam áreas comuns.
“Ser revistado oito vezes é inaceitável,” disse Henriques. “Temos visto que esse tipo do comportamento policial acontece com unidades específicas de policiamento, que estão reproduzindo as abordagens de outras situações, do passado.” A gestão policial festas não faz sentido, ele acrescentou. Não é o trabalho da polícia.
“Há a necessidade de regras de transição. Falhas e erros existem. Pode-se consertar. Para tanto, precisamos monitorar e avaliar as políticas públicas, o que não é usual no Brasil. Pensa-se que é tarefa de técnicos.”
Aos críticos da política de pacificação, Henriques lembrou que até os anos 80 as favelas cariocas não constavam dos mapas da cidade.
“No início, a paz permite a regularização dos serviços públicos. Depois vem o foco na qualidade, o que é a pauta do país. Esta pauta sob guerra não é possível.”
A questão sobre o legado da escravidão é muito pertinente. Sobre a falta de pensá-lo, também, é alarmante. Não quero polemizar, mas fala-se que cotas sublinham a diferença (há que se lembrar que o Rio de Janeiro é uma cidade pautada na diferença: como publicitário, reflito sobre o slogan do Globo: Faz diferença). Na minha opinião, cotas são medidas emergenciais para uma situação história: regra de transição. Mas, não saindo do foco da discussão, pude ver na minha última visita ao Rio (depois de alguns anos distante) uma mudança significativa na cidade: entradas de favelas urbanizadas, praças revitalizadas, uma sensação de segurança maior. E melhor: segurança, e não repressão.
Obrigada pelo comentário, Sérgio. Venha ao Rio mais vezes, vale a pena–