Presságio nada bom para uma integração urbana plena e eficiente
Num abafado domingo, dia 16 de outubro deste ano, o Secretário de Habitação Municipal Jorge Bittar se reuniu com moradores da Vila Autódromo debaixo de uma tenda listrada de branco e azul, montada em uma área livre ao lado da comunidade. Do outro lado de uma avenida, uma aglomeração de altos prédios de apartamentos relativamente novos faziam testemunho silencioso.
“Não vou fazer como no passado,” jurava o secretário. “Não época do PAN– isso gerou aquela tensão. Vamos mudar.” Quatro dias antes, a prefeitura iniciara o cadastramento das casas da vila, escrevendo números nas fachadas com tinta spray. Alguns moradores assustados filmaram a abordagem.
Vila Autódromo é apenas uma comunidade– a mais visível– das que passam pela emoção das remoções que acontecem no Rio de Janeiro, em função da construção de equipamentos olímpicos. De acordo com a Secretaria Municipal de Habitação, 623 famílias já foram reassentadas para ceder lugar aos corredores de trânsito rápido de ônibus (BRTs) que estão em construção. Não estão disponíveis números sobre famílias reassentadas por causa de obras de urbanização pela primeira fase do Morar Carioca, nem existe uma previsão oficial de reassentamentos futuros.
Em algumas favelas, há discordância, e discrepâncias de informação sobre a remoção de moradores que estariam morando em áreas de risco.
A maioria dos cariocas removidos não possui título às suas casas ou aos terrenos em que essas se encontram. Mas na Vila Autódromo, que abriga umas 537 famílias à margem da Lagoa de Jacarepaguá, os moradores ganharam títulos de posse há 17 anos do então governador Leonel Brizola. Há casas com história de quatro décadas; algumas são grandes, com quintal e animais domésticos.
Pelas contas do Plataforma Dhesca Brasil, uma articulação nacional com apoio da ONU, de 36 movimentos e organizações da sociedade civil, 5.846 famílias cariocas passaram recentemente pela experiência ou pela ameaça de remoção. Um relatório lançado em maio deste ano contabiliza e descreve casos dramáticos de perda, inclusive de saúde física e mental. Enquanto as autoridades olímpicas locais se orgulham pela reciclagem de material na construção de equipamentos olímpicos, a prefeitura não retira o entulho das demolições, sujeitando quem fica à dengue, por exemplo.
A prefeitura diz que é preciso derrubar a Vila Autódromo porque está no lugar onde vai ser construído o Parque Olímpico.
Cada família teria duas opções, Bittar explicou naquele dia de sufoco pós-chuva: ou aceitava um apartamento de por volta de quarenta metros quadrados a ser construído num terreno próximo, com acesso fácil a um parque com churrasqueiras, posto de saúde, crêche e escola; ou aceitava uma indenização calculada através de uma tabela da prefeitura, de valores do material utilizada na construção da casa a ser demolida.
Quaisquer que sejam os números, as pessoas afetadas por expropriação são relativamente poucas. Talvez seja por isso que nem o relatório do Dhesca, nem uma carta da Amnesty International ao Comitê Olímpico nem dois (melo)dramáticos programas de televisão da ESPN, nem matérias do jornal inglês The Guardian, do espanhol El País, do USA Today, muito menos questionamentos de blogueiros, de ONGs ou de uma representante da ONU parecem ter surtido efeito na condução das remoções. No ano passado, a Defensoria Pública do estado enviou uma notificação ao presidente do Comitê Olímpico Internacional, Jacques Rogge , com cópia a Comissão de Ética do Comitê Olímpico Internacional, de violação de direitos humanos.
Pode ser que o diálogo, também prometido pelo secretário aos moradores naquele domingo, seja um exercício ainda bastante desconhecido nesta sociedade autoritária. O governo (estadual, nesse caso) nem a classe média ouve, por exemplo sobre o traçado da nova linha de metrô.
O que será construído no local onde fica a Vila Autódromo? De acordo com o projeto vencedor para o Parque Olímpico, nada. “Pergunte aos planejadores,” respondeu Bittar, quando RioRealblog levantou a dúvida. Na reunião, um morador fez uma suposição e uma sugestão aos berros. “Coloque o prédio [que será construído aqui] lá onde você quer nos levar.”
Na reunião, preocupações se manifestaram. O apartamento é pequeno, em prédios de cinco andares sem elevador. Os moradores terão que pagar uma taxa de condomínio pela manutenção. E, por dez anos, não poderão vender o imóvel, ao contrário do título que possuem agora. Por outro lado, a indenização não leva em conta o valor do terreno ao qual o morador possui título; com o dinheiro que a prefeitura oferece, seria impossível comprar um terreno na região para construir uma casa, sobretudo no mercado atual de boom (que engrossa os jornais locais, que tendem a evitar o assunto de remoções). E os prédios do programa federal Minha Casa Minha Vida, do qual os apartamentos farão parte, são notórios pela má qualidade de construção.
Por esses e outros motivos, pelo menos metade dos moradores prefere ficar onde está, de acordo com a Agência Brasil.
Em abril de 2011, depois de mudanças administrativas na Defensoria Pública, a equipe do Núcleo de Terras e Habitação (que havia enviado a notificação ao COI) se demitiu em protesto. Leonardo Chaves, Subprocurador Geral de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público estadual, disse em entrevista com o RioRealblog que está se esforçando para persuadir o prefeito e o governador a respeitarem os direitos constitucionais à moradia, dos moradores das favelas sujeitos a remoção. Ele, que aparece no programa da ESPN fazendo críticas, diz que trabalha nos bastidores; não mostrou nenhum ofício ou outro documento. “As pessoas foram morar [na Vila Autódromo] porque ninguém quis. Agora virou o alvo da cobiça,” desabafou.
Na reunião debaixo da tenda, um grupo reivindicou a urbanização da vila, justamente aquilo que o projeto inglês vencedor propõe– ou seja, a tendência atual do urbanismo, até praticado aqui, por meio do programa Morar Carioca (estranhamente ainda sem data para o início da execução dos projetos vencedores da segunda fase), cuja tarefa é a urbanização de todas as favelas do Rio até 2020.
No Rio de Janeiro, não se ouve falar de construtoras sendo obrigadas a erguer moradias de renda baixa em troca de permissão da prefeitura para construir prédios de classe alta, como acontece em outros países. O mais próximo que se chega a isso é o requerimento de que a empresa vencedora da licitação para construir o Parque Olímpico irá implantar “a infraestrutura (rede de água, esgotos, asfalto e iluminação) […] do terreno na Estrada dos Bandeirantes para onde serão reassentadas as famílias retiradas da Vila Autódromo”.
A citação vem do edital lançado há uma semana; na segunda feira acontece um protesto frente à prefeitura do Rio, das violações de direitos humanos em função dos megaeventos vindouros.
Dan Epstein, diretor de Sustentabilidade dos Jogos Olímpicos de Londres, explicou ao RioRealblog, depois de um recente seminário organizado pelo jornais Extra e O Globo, que na capital britânica existe um sistema de avaliações independentes para a indenização, em casos de expropriação. Mas mesmo em Londres, onde poucas pessoas tiveram que sair do Parque Olímpico, há queixas de injustiça. Dos chineses e seus hutongs nem se fala; e os apartamentos do Minha Casa Minha Vida são palácios em face à moradia providenciada na África do Sul, àqueles que tiveram que sair de casa por causa da Copa do Mundo de 2010.
A apresentação PowerPoint das novas moradias para a Vila Autódromo tardou por falta de Internet no local, e em todo caso foi difícil de acompanhar, por causa da luz do sol. Mas já se tornou irrelevante, ao menos por um tempo. Pois dez dias antes da reunião, o jornal O Estado de São Paulo revelara que a prefeitura carioca comprava o terreno para o reassentamento dos moradores da Vila Autódromo, por R$ 19,9 milhões, de uma construtora que fizera doações à campanha de 2008 do prefeito Eduardo Paes e de seu chefe de gabinete.
“Três empreendimentos das empresas (dois da Rossi e um da PDG)”, dizia a reportagem, “são vizinhos à Vila Autódromo e deverão se valorizar após a remoção dos barracos”. Quatro dias depois da publicação da notícia, o prefeito cancelou a compra. Ele aguarda uma perícia judicial.
Pode-se contar a história do Rio de Janeiro como um episódio após o outro de chegar na sala e encontrar quem devia ficar nas “dependências”, sentada no sofá. Pois, com algumas exceções, a sala vai migrando. “De 1962 a 1975, 140 mil pessoas foram removidas,” diz Rafael Gonçalves, advogado, historiador, professor da PUC-Rio e autor de Les favelas de Rio de Janeiro – histoire et droit, XIXe et XXe siècles.
Por volta de 17% da população carioca mora em favela. Ou seja, um pouco menos do que uma em cinco pessoas; mais, quando se leva em conta a região metropolitana.
Agora, com as Olimpíadas, a Zona Oeste virou sala. Acontece nas melhores cidades… e geralmente, a resposta dos mais ricos às queixas dos mais pobres é “não deviam ter construído suas casas naquele local”. Quem fez isso sabia muito bem que era área de risco, que não teria título, ou que o terreno poderia depois interessar a outros.
Mas, e a integração do Rio de Janeiro, que acontece também por causa dos megaeventos? O lema, constantemente repetido pelas autoridades, é tratamento igual no morro ao aquele do asfalto. Mesmos serviços, mesmas leis e responsabilidades.
Estamos num momento de transição, de uma situação em que as pessoas procuravam estacionar na calçada, a uma em que os reboques e guardas circulam, os prédios removem os frades e os pedestres ganham a livre passagem. Vamos de uma situação em que as pessoas construíam suas casas do jeito que conseguiam em lugares inóspitos e mesmo assim, criavam laços profundos com os vizinhos, a uma situação em que.. ? Não está claro.
O quadro lembra o Liquid Paper, passado em cima de um erro tipográfico dos antigos. Dificilmente o resultado não fica uma bolota pegajosa de branco, ou um misto ilegível da letra errada com a correta.
E a falta de clareza na questão do tratamento das pessoas que moram no caminho da transformação da cidade denuncia uma ambivalência preocupante, da parte das autoridades governamentais. Se a transformação do Rio de Janeiro até 2016 acabar por ser parcial, ou se esbarrar em algum obstáculo político, será por causa dessa ambivalência.
E a única solução à ambivalência é liderança segura, eficiente, responsável e transparente.
Clique aqui para um vídeo e aqui para uma reportagem escrita sobre o assunto, do New York Times.