Acontece algo novo no Rio

Renato Sorriso mostrou a alma do Rio, sim, mas não do jeito que o jornalista veterano, Elio Gaspari, assinalou, na sua coluna do dia 8 de março.

“O Rio tem a capacidade de se encantar com personagens do andar de baixo”, escreveu Gaspari, ao acreditar nas reportagens dizendo que o gari sorridente havia aderido à greve durante o Carnaval. “Brigar com gari pode não ser uma boa ideia, mas, quando um prefeito está de um lado, e um sujeito como ‘Sorriso’ está do outro, ele deve pensar duas vezes.”

O primeiro erro do colunista foi de acreditar nas reportagens.

As fotos do gari mais famoso do Rio, carregado nos ombros dos colegas, levaram muita gente, inclusive jornalistas, a supor que ele tivesse aderido à greve. Durante a paralisação, porém, vimos uma inexplicável dificuldade, de parte dos meios de comunicação, de ouvir grevistas. E aparentemente, apenas um veículo tomou a iniciativa de ouvir Renato Sorriso.

Ao site da UOL, ele teria falado o seguinte: “Eu sou totalmente a favor de cada um correr atrás dos seus objetivos. Mas eu estou batendo o meu ponto certinho. Trabalhei no Carnaval durante os desfiles na Sapucaí e também varri algumas ruas na Tijuca, como de costume […] Preferi não fazer greve”.

O segundo erro do Gaspari foi de focar em um fenômeno antigo, em vez de enxergar o novo.

O Rio ainda tem a capacidade de se encantar com personagens do andar de baixo. Mas a questão da hora não foi, como diz o colunista, a inabilidade do prefeito Eduardo Paes de reconhecer esse fenômeno. Independente disso acontece algo de novo, que o próprio Gaspari deixou de reconhecer na greve dos garis: as tais personagens do andar de baixo  –“representados”  por Sorriso — não se contentam mais com o encantamento dos que habitam o andar de cima.

Há séculos, a sociedade brasileira alivia as tensões da desigualdade por meio do encantamento “com personagens do andar de baixo”, como Gaspari descreve. O próprio Carnaval é o maior exemplo disso. O filme O Som ao Redor retrata maravilhosamente bem as relações amigáveis entre patrões e empregados que sustentam a estrutura tradicional.

O prefeito entendeu o que era preciso entender: que  o gari sambista (como também o sindicato da categoria que, diziam os grevistas, não os representava) virou irrelevante. Ao negociar diretamente com eles, Paes cedeu enormemente, subindo o piso salarial de R$ 875 para R$ 1.100, bem perto dos reivindicados R$ 1.200.

No fim das contas nuas e cruas, festejar o samba do Renato Sorriso enquanto ele varria a avenida Marquês de Sapucaí era pouquíssima coisa, comparado aos 37% de aumento que os colegas dele conseguiram, cruzando os braços durante o Carnaval (Aliás, houve pouco comentário na mídia sobre os 37%, possivelmente um número histórico).

Face à transformação profunda da sociedade que a greve dos garis aponta, chega a hora de o “andar de cima” prestar atenção nos festejos compensatórios que fazem parte de nosso dia a dia. Encantar-se com os personagens do andar de baixo, ou seja, tecer e manter relações amigáveis com os subordinados, hoje fica muito aquém do que é necessário para sustentar a democracia brasileira de forma pacífica.

Não foi exatamente o Sorriso quem mostrou a alma, mas os garis que tiveram a coragem de revelar, para quem quiser enxergar, que a alma da cidade está em plena transformação. Tornou-se aceitável questionar o status quo, driblar as instituições representativas, fazer “motim”, como o prefeito inicialmente descreveu o movimento.

E não apenas no caso dos garis. Acontece há mais de quarenta dias uma greve de funcionários no interior do estado do Rio, no complexo petroquímico da Comperj, que também desafiam um sindicato.

Cada vez mais irá aparecer o real teor das trocas entre os andares da sociedade brasileira. No Rio de Janeiro, já sentimos isso na pele – e no nariz.

No mais, quando vamos instituir um programa de reciclagem plena?

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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1 Response to Acontece algo novo no Rio

  1. Marcia Cunha says:

    Reblogged this on Incubare & Sucubare.

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