
Apartamentos preparados para receber atletas olímpicos e paraolímpicos são vendidos agora, para quem vai morar aqui depois dos Jogos Olímpicos: 3602 unidades em 32 prédios de 17 andares, para 18 mil atletas
O arquiteto e urbanista Lúcio Costa, morto em 1998, autor do plano piloto de Brasília, estaria aplaudindo de pé: que a cidade do Rio de Janeiro expandisse para o oeste e ocupasse as várzeas da Zona Oeste era, para ele, uma espécie de Destino Manifesto. O centro da cidade era fadada a se transferir para o amplo território dos 166 quilômetros quadrados da Barra da Tijuca, onde todos iriam rodar tranquilamente em grandes avenidas novas.
Jane Jacobs, autora de Morte e Vida de Grandes Cidades, guru dos urbanistas mais de vanguarda, estaria se virando no túmulo, pois ela pregava bairros densos e diversificados, com foco no pedestre, como a receita para uma cidade segura e saudável.
Costa desenhou a ocupação da Barra nos anos 1970, mas foi apenas nos anos 1980, com o incremento da violência e a decadência do Rio, que o bairro começou a tomar vulto.
Foi a versão carioca do white flight norte americano, dos anos 1960, quando as famílias brancas do pós guerra fugiam das cidades para os subúrbios de grama aparada e cerquinhas brancas. Deixavam para trás os negros que migravam do sul do país para as metrópoles do norte, em busca de empregos industriais.
Vinte anos mais tarde, na Barra da Tijuca, torres e condomínios fechados espalharam-se, construídos por peões que faziam suas próprias casas às margens das amplas lagoas; todos despejavam o esgoto nelas. Desde então, as várzeas vem sendo progressivamente ocupadas. O túnel da Grota Funda, inaugurada em 2012, deu ímpeto ao crescimento contínuo em direção ao oeste, para os bairros de Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz.
No momento em que a cidade do Rio venceu a competição para receber os Jogos Olímpicos de 2016, houve questionamentos, da parte de urbanistas, do plano para sediar a maior parte dos Jogos na Barra. Diziam eles que tal localização do evento iria perpetuar e alimentar o erro que foi a criação da Barra, contribuindo ao espraiamento da cidade, o que aumenta o custo dos serviços municipais e a demanda por investimentos em transportes públicos de trajetos longos. Recomendaram que os Jogos acontecessem na decadente Zona Portuária, plena de espaços subutilizados — e localizada ao lado do centro da cidade.
Venceu esse debate quem acredita na Barra, que em 2010 abrigava 301 mil pessoas, número que deve ter crescido de maneira significativa nos últimos quatro anos. A cifra representa apenas cinco por cento da população da cidade, mas levando em conta a população de outros bairros da Zona Oeste, chega-se a quase 20% da população municipal.
E, como prega nosso prefeito Eduardo Paes, essas pessoas todas não vão migrar para a Zona Portuária ou a Zona Norte, áreas com potencial de adensamento. As pessoas já estão espalhadas pela Zona Oeste — onde a terra é mais barata — e precisam de transporte e moradia.
E aí entram a empreendedora imobiliária Carvalho Hosken e a construtora Odebrecht, duas de um pequeno grupo de empresas que mais estão aproveitando as oportunidades da transformação do Rio de Janeiro.
Para quem não mora na Barra, como sua blogueira, a visita ao lançamento, no último sábado, da Ilha Pura (que não é uma ilha, mas “um pedaço de terra cercado de belezas naturais por todos os lados”, como descreveu Ricardo Correa, assessor de marketing da presidência da empreendedora imobiliária Carvalho Hosken) foi como conhecer um outro país. A sensação de estranhamento se reforçou mais tarde no mesmo dia, durante um passeio pelo centro da cidade, seguido de uma viagem de 70 minutos à uma ilha de verdade, a de Paquetá (onde os automóveis não andam e as bicicletas reinam), na baía de Guanabara, para ouvir um pouco de samba.
Enquanto a maioria dos mil clientes esperados no dia do lançamento e dos 1.800 corretores de imóveis já presentes eram brancos, muitos dos passageiros na viagem de metrô de Ipanema ao Largo da Carioca, sábado de tarde, ostentavam a pele mais escura e areia nos pés. O destino deles, depois de um dia de lazer na Zona Sul, era a Zona Norte.
Na Ilha Pura, os clientes e corretores desciam de seus carros (entregues a um serviço de valet), para conhecer o lindo projeto, tomar espumante, beliscar salgadinhos e ouvir uma música suave ao vivo.
Enquanto isso, um quarteto tocava choro na livraria Arlequim, no Paço Imperial, construção do século XVIII, no centro da cidade, que abrigou a família real na sua fuga do Napoleão.
Alguns passos à frente, debaixo do Arco do Telles, uma roda jogava capoeira de Angola. Mais adiante, num canto da travessa do Comércio, um conjunto tocava samba para os comensais de um restaurante espremido nos paralelipípedos; outras grupos davam vida ao centro da cidade ao conversar, beber, comer, e curtir música na rua do Ouvidor. Pelo lado oposto da praça Quinze, pertinho do chafariz de Mestre Valentim, que data do século XVIII, um grupo praticava o skate. O espaço novo da praça Quinze, em frente ao decrépito estação das barcas, um vazio deixado pela recente remoção da Perimetral, suscitava ideias para atividades urbanas, neste local renovado que liga o Centro às águas que lhe deram origem.

Primeira Vila de Atletas de alto padrão (diferente dos apartamentos dos Jogos Panamericanos) no mundo, diz a Carvalho Hosken
Perguntado sobre diversidade cultural na Ilha Pura (cujo vídeo promocional, narrado pela atriz veterana Fernanda Montenegro, mostra uma única família de pele um pouco mais escura), Ricardo Correa, o assessor de marketing, disse que a Carvalho Hosken é patrocinadora da Orquestra Sinfônica Brasileira, cuja nova sede é a Cidade das Artes, a uma curta distância do projeto imobiliário, de carro. Falou também de shoppings, cinemas, das praias vizinhas, e do grande parque no entorno dos prédios, em teoria aberto ao público (por motivo de lei). Disse que cada condomínio do complexo contará com um pequeno home theater. Mencionou o pólo gastronômico e as enormes esculturas nos jardins de outro empreendimento da Carvalho Hosken, a Península (uma verdadeira península) — que, ano passado, recebeu uma exposição de objetos de art nouveau e art decó.
“Barra é um grande caldeirão cultural,” disse ele. “Onde as tribos se encontram, como em Nova Iorque. Não tem identidade própria ainda, por ser nova.” Mesmo assim, acrescentou, a Barra já mudou. “A Barra dos emergentes não existe mais. As pessoas que moram aqui produzem muito, trabalham muito. Há engarrafamentos nas saídas dos prédios, nas horas do rush.”

Carlos Carvalho Hosken, 90 anos, comprou grande parte da Barra há quatro décadas. Viveu o suficiente para o investimento render
A ideia da vida na Ilha Pura, diz ele, é que o morador “Pare seu carro na sexta-feira, depois do trabalho, e só o pegue de novo na segunda-feira, para ir ao trabalho”. Barra “é outra cidade”, explica. “Ninguém vai precisar mais ir para a Zona Sul.”
Quem quer se mudar para a Ilha Pura, de acordo com Correa, são famílias jovens, que já moram na Barra e pensam num ninho. Os quatro mil clientes que visitaram o stand no último mês e meio procuram segurança e espaço para as crianças brincarem. Gostam do contato com a natureza e os cuidados com o meio ambiente (esgoto tratado e levado até o emissário submarino da Barra) e a sustentabilidade, que possibilitaram a certificação LEED ND, a primeira da América Latina para um bairro novo. Os sete condomínios irão oferecer transporte até as estações mais próximas dos BRTs e, provavelmente, traslado até a praia e à Linha 4 do metrô. O layout dos apartamentos é moderno e flexível, e leva em conta a tendência de não mais contar com empregados domésticos que dormem no emprego.
E os preços são, para a classe média, relativamente acessíveis: o apartamento menor, de 75 metros quadrados, custa em torno de R$ 712 mil. O maior, de 230 metros quadrados, vende por pouco mais de dois milhões de reais.
Nada disso se relaciona diretamente com o fato de que há uma pequena favela na vizinhança, a combalida Vila Autódromo. Cariocas de diferentes classes sociais têm bastante experiência em compartilhar geografia. Mas o prefeito está convencido da necessidade de retirar a Vila Autódromo das proximidades do Parque Olímpico, apesar da comunidade ter sido premiada com o Deutsche Bank Urban Age Award em 2013, pelo plano de requalificação urbana que desenvolveu em conjunto com a UFRJ e a UFF.
A relação indireta é que a Ilha Pura é um de vários empreendimentos imobiliários na área que, por motivos de mercado, dificultam a permanência dos moradores da Vila Autódromo. Removidos, eles — muitos dos quais, detentores de títulos de propriedade, construíram suas casas e lá moram há décadas — encaram duas opções: receber um apartamento do programa federal Minha Casa Minha Vida ou receber o valor do material de construção da casa a ser demolida.
A expansão da cidade para o Oeste lembra um pouco a expansão dos Estados Unidos no mesmo sentido, em meados do século XIX. “Aqui nasce uma cidade nova,” comemora Correa. “O Rio de Janeiro está crescendo muito, não tinha mais para onde se dirigir.”
Foi a decisão de sediar a maior parte dos Jogos Olímpicos na Barra da Tijuca que impulsiona uma nova onda de investimento, construção e crescimento na região. Pretende-se que a extensão do Metrô, junto com três novas linhas dedicadas de ônibus articulados, as BRTs, não apenas atenda à população da região, mas que complete a integração da cidade como um todo, bem como Lúcio Costa previa.
No entanto, à luz dos ensinamentos de Jane Jacobs, é nosso dever nos perguntar: como será essa cidade toda, com algumas pessoas vivendo em ilhas puras, e outras experimentando a variedade inerente à vivência humana? Com a ocupação de territórios que força a saída de quem não consegue mais pagar o preço deles? Com os custos de densidade baixa de uma região sendo pagos por toda a população? Provavelmente, bem parecida com muitas outras cidades do mundo, enfrentando as mesmas questões e desafios.
Pois hoje, nos Estados Unidos, um número crescente de pessoas foge dos subúrbios em direção ao centro da cidade, lugar mais animado, de onde quem ali ficou — os pobres– está sendo despejado.