Sabatina de nosso prefeito: um guia

Se todos escutassem

Consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo

Eduardo Paes, nosso prefeito que completa o segundo mandato no ano olímpico que vem, se submeteu a uma sabatina quarta-feira passada, conduzida por repórteres da Folha de São Paulo. Paes entende o valor da comunicação. Depois das manifestações de 2013, a prefeitura organizou três Google Hangouts, para que ele pudesse dialogar com uma variedade de cidadãos. Mas até a semana passada, fazia tempo que Paes não se abria a perguntas diante das câmeras.

Notavelmente, fez isso para um jornal de São Paulo, num momento em que pode faltar quadros políticos para candidaturas nas eleições estaduais e presidencial de 2018, com muitas carreiras políticas ameaçadas pelas atuais investigações de corrrupção. Até agora, o nome Eduardo Paes está livre e desempedido.

Sua blogueira já teve algumas oportunidades para estar junto ao prefeito e ouvir suas ideias e posições. Pode testemunhar que inicialmente, a sensação é de ter colocado a cabeça numa centrífuga. O cérebro vira suco.

Ou seja, ele é um excelente político.

Depois de mais alguns encontros, é possível recuperar os sentidos. Então, como funciona a centrífuga?

O truque é ocupar dois lugares ao mesmo tempo. Trata-se de dualidades que interagem entre si, recortando tudo.

Isso nosso prefeito faz literalmente, ao lembrar, constantemente, que foi criado na Zona Sul e é queridíssimo no subúrbio. Cita nomes de bairros  que devem ser pouco conhecidos pelos amigos de infância. As áreas de maior valorização imobiliária nos últimos anos, de acordo com o prefeito, foram Oswaldo Cruz, Madureira, Vaz Lobo e Bento Ribeiro. Se elegeu prefeito, disse também na sabatina, nos lugares de menor IDH da cidade, como Santa Cruz e Guaratiba.

Para uma cidade tão diversa e dividida como o Rio de Janeiro, tal exercício é um elemento primordial da vida política. Pois quando Paes dialoga com eleitores da Zona Sul e fala das Zonas Norte e Oeste, mostra conhecimento superior, difícil de desafiar. A intimidade com o subúrbio é uma ferramenta para afirmar que conhece como poucos a cidade toda e sabe quais são suas reais necessidades. Duvidar pode ser um ato leviano.

Além da dualidade geográfica, existe a dualidade confiança/esperteza.

Paes se coloca à disposição para levar a lugares notórios quem tiver interesse em visitar. Sobre a favela Metro Mangueira, local de uma briga recente, ele afirma que, dos moradores removidos — “devem ser todos meus eleitores” — ninguém foi removido com força, que todas as famílias hoje moram em casas que ganharam, do outro lado da linha do trem, em frente ao local demolido. Explica que ficaram oficinas mecânicas, que vendiam peças roubadas, um perigo para a classe média (referência aos esfaqueamentos dos últimos meses, praticados por assaltantes). Foram demolidas três oficinas, diz o prefeito, fonte das críticas à prefeitura e de uma batalha entre a polícia e estudantes da UERJ. “Temos um projeto pronto para fazer um polo automotivo,” promete. “Te levo lá, a dona Maria faz um feijão arrumado”.

Ponte entre pobres e ricos, transmite autenticidade. Mas também, ao contar a história de como conseguiu recursos federais para construir os piscinões da praça da Bandeira, Paes faz o papel do malandro. “Eu literalmente ‘omiti informações’, para ser educado,” confessa. Diz que falou para o então presidente Lula e sua chefe de gabinete, Dilma, o seguinte: “Se não liberar esse recurso, vai alagar o Maracanã na abertura da Olímpiada, imagina que vergonha mundial!” Aí vem, de novo, a autenticidade: “Eu só não contei que agosto é o mês mais seco do ano. ”

Essa fala é um exemplo perfeito da política tradicional, de clãs. O prefeito representa nossa clã como todo o empenho, em Brasília, indo até o extremo de “omitir informações”. Podemos confiar nele, pois a meia-verdade está a nosso serviço.

Ao se colocar na posição do confiável que batalha por nós, Paes se sente confortável para apontar as falhas dos outros: é do jogo. “Da mesma maneira que a gente inventa história a oposicao também faz”, observa. Assim, os críticos aos reassentamentos/remoçoes, ao campo de golfe olímpico na reserva ecológica, e a outras ações da prefeitura podem muito bem ser “maluco contando história”, como ele coloca, “demagogos” que não aparecem na hora das enchentes que matam moradores de favela — ou simples aproveitadores.

Vila Autódromo serve para ilustrar a terceira dualidade de nosso prefeito, a de humildade/orgulho. “O único caso de reassentamento relacionado com as Olimpíadas é Vila Autódromo e aí faltou diálogo,” reconhece, para em seguida contar que ele pessoalmente tomou as rédeas da situação, há dois anos, quando percebeu a falha (não dele, estamos levados a entender, mas de outros na sua administração). Ao diminuir um tanto o orgulho, a humildade fortalece a autenticidade.

“Não estamos tirando todo mundo,” diz o Paes, agora juntando humildade com confiança. “Só os que estão nos acessos, e nas áreas de proteção ambiental. Vale a pena conhecer as casas ali. Tem filho de desembargador. Tem hangar de helicoptero. Onde agimos com falta de respeito foi na Vila Autódromo. Dois anos atrás eu entrei pessoalmente, converso pessoalmente com o presidente dos moradores, recebo pessoalmente todas as pessoas que moram ali, fui para o Riocentro, discutimos tudo, então, a gente tem muita conviccao de tudo que a gente está fazendo.”

Quando o blogueiro Mario Magalhães pergunta a localização do acesso ao Parque Olímpico, o que teria obrigado a remoção de moradores da Vila Autódromo, Paes faz questão de desconfiar da desconfiança dele. Magalhães diz ter procurado o acesso, sem éxito (no mapa inicial do Parque, a Vila perdura; ela inclusive ganhou um prémio por um plano de reurbanização que desenvolveu junto com acadêmicos).

“Eu te mostro depois, deixa eu só responder a pergunta [de Mônica Bergamo] e respondo à pergunta FBI, não tem segredo,” cutuca o prefeito, sutilmente enfraquecendo as suspeitas de seus críticos, de que teremos prédios no lugar da Vila Autódromo, depois das Olimpíadas.

Ao voltar à pergunta, depois de ter contado a história das piscinões, de ter se orgulhado das Olimpíadas mas baratas da história (“diferente da Copa”), de lembrar de remoções de famílias por causa de chuvas (“das remoções todas, 22 mil familias, 72,2 %, ou 15,937 famílias, foram reassentadas para acabar com uma chaga dessa cidade de gente morrendo o verão inteiro. Os demagogos naõ aparecem quando eles morrem. Vou acabar com as áreas de risco nessa cidade”), Paes finalmente descreve os acessos à área de serviços e os serviços em si — que incluem, ele nota, o Media Press Center, onde os jornalistas presentes talvez se encontrem trabalhando durante os Jogos. Irão circular 100 mil pessoas por dia, diz.

Nessa descrição, o prefeito utiliza, em vez de um mapa, as mãos no ar. Para falar da valorização imobiliária, ele tem dados em papel.

Para quem quiser mais informações, Paes promete um novo site na Internet, onde vai revelar e responder às mentiras de seus críticos. Vai também, diz, em resposta a uma pergunta sobre a falta de transparência, “olhar mais os contratos” das obras dos Jogos de 2016.

“Permitir que os cariocas olhem,” corrige Mário Magalhães.

Esse post fala mais de forma do que de conteúdo. Por essa e outras razões, vale a pena ler esse post, de Mário Magalhães.

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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4 Responses to Sabatina de nosso prefeito: um guia

  1. Rio real says:

    obrigada, Andréa!

  2. David says:

    Bom artigo Julia. A tatica da meia-verdade, da ofuscacao, da esquizofrenia (“Os demagogos naõ aparecem quando eles morrem. Vou acabar com as áreas de risco nessa cidade”) orientam o discurso dele. Apropria-se de um suposto merito em terem valorizado-se as areas de Vaz Lobo, Madureira, etc., mas isenta-se da culpa por contratos ilicitos…

  3. Rio real says:

    vamos pressionar pela transparência!

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