O Rio de Janeiro consegue sair do vermelho?

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Pôr do sol no verão carioca: a  luz além

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Está quase pronto o livro de sua blogueira sobre como funciona o Rio de Janeiro. Uma das aprendizagens mais interessantes no caminho veio bem no fim, de um artigo na revista Piauí deste mês (tem paywall– mas a assinatura vale muito a pena, é uma das melhores publicações no país): o sistema brasileiro de impostos centralizados,  ao contrário de sistemas em países como os EUA, fundamentados no pagamento local de impostos sobre imóveis, alimenta o clientelismo (e, por consequência, a corrupção). Portanto, tende a manter as necessidades e demandas do cidadão comum fora do esquema de troca de favores. Moradia, saúde, transporte e escolas, acessíveis e adequados, nunca chegaram a existir no Brasil.

Tais necessidades e demandas não puderam ser totalmente esquecidos. Durante séculos, para manter a tampa na panela de enorme desigualdade socioeconômica, o Brasil desenvolveu medidas compensatórias. Aquietava-se os pobres por meio do décimo terceiro salário, tribunais do trabalho que favorecem o funcionário, o FGTS, algum grau de mobilidade social, períodos de crescimento econômico —  e doses generosas de feriados, telenovelas e carnaval, entre outras compensações. Os ricos levavam porcentagens de contratos ou subornavam políticos, e modernizaram o país para si mesmos.

Tal pacto social está se desfazendo.

Então temos agora rebeliões e massacres, em penitenciárias de diferentes estados; o Rio de Janeiro pode muito bem ser o próximo alvo.

Talvez nunca saibamos se a onda de revoltas, supostamente desencadeada pelo fim da aliança entre as facções PCC e CV, meramente espelha a instabilidade política geral  — ou se existe uma conexão direta entre os dois fenômenos. Reportagens recentes ligam políticos e traficantes de drogas membros de facções, no estado de Amazonas, onde ocorreu o primeiro de quatro rebeliões já neste ano.

Várias conexões inesperadas vêm à tona nesses dias, indicando que o crime não se limita a compartimentos estanque. Joalheiros no Rio e pelo menos um restaurante, o Manekineko, são objeto de denúncias de lavagem de propinas supostamente pagas ao ex governador Sérgio Cabral.

Brasília agora tenta lidar com a violência e superlotação, que assolam as penitenciárias brasileiras há muitos anos. As medidas já divulgadas se tratam, na maioria, de promessas antigas. A descriminalização das drogas, porém, começa, enfim, a ocupar o centro do debate sobre a violência, o crime e a justiça. Na terça-feira, o presidente Temer disponibilizou tropas do Exército aos governadores de estados afetados.

O impressionante poder das facções sugere que será preciso a utilização de força para retomar o controle das prisões brasileiras, embora o ministro da Defesa Raul Jungmann tenha dito na terça-feira que os soldados iriam apenas inspecionar as unidades, sem aviso prévio nem contato com prisioneiros. No estado do Rio Grande do Norte, uma cadeia funciona sem celas para os detentos, desde 2015.

O estado do Rio tem seu próprio desafio: chegar a um acordo para pagar salários, contas e dívidas e, enquanto estejam em greve a Polícia Civil, guardas de penitenciária (esses últimos encerraram a greve na sexta-feira) e servidores de saúde pública, atender aos seus cidadãos.

Sob a tutela inédita da presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, o Ministério da Fazenda e o governo estadual do Rio elaboraram um acordo que permitiria o estado adiar pagamentos de dívida com a União e receber empréstimos com a garantia do Tesouro. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, contudo, requer a privatização da Cedae e austeridade nos gastos estaduais, em troca por tais facilidades — o teria que ser aprovado pela assembleia estadual. Os deputados estaduais já rejeitaram um pacote que o governador Pezão lhes enviou no ano passado, contendo medidas semelhantes, tais como cortes de salário e horas trabalhadas, e um aumento no desconto salarial para a previdência dos servidores.

orçamento de 2017, recém-sancionado pelo governador, inclui receitas de R$ 58 bilhões e um déficit de R$19 bilhões.

O presidente Michel Temer e o plenário do STF, que volta de recesso no dia primeiro de fevereiro, também precisam aprovar o acordo.

Com o presidente, o Ministério da Fazenda, juizes, deputados, o governador, servidores, grevistas e prisioneiros rebeldes no jogo, a pressão é enorme. Qualquer solução para tirar o Rio da falência serveria como modelo para outros estados problemáticos, como Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Se falhar o acordo, teremos, provavelmente, mais distúrbios sociais aqui e em outros lugares.

O que poderia nos trazer alívio? Um aumento no preço do petróleo — só que, com tanta incerteza no mundo, uma nova bonança é apenas um sonho.

Tudo isso se desenrola (ou fica sem movimento algum) no contexto da Lava Jato, que pode tirar o emprego de alguns dos políticos mais importantes do Rio. O jornal O Globo reportou que o ex secretário estadual de Obras, Hudson Braga, faria uma delação premiada, incriminando deputados estaduais e conselheiros do Tribunal de Contas Estadual. Reportagens anteriores sobre corrupção alegada sugerem que estariam entre esses o presidente da Alerj Jorge Picciani, chefe de uma dinastia do PMDB, que irá presidir a votação da assembleia nas medidas do acordo; e Jonas Lopes de Carvalho, presidente do TCE.

O próprio Pezão estaria na mira da Lava Jato. E, pelo seu papel na tragédia das contas públicas e pelos gastos ainda duvidosos, conta com pouco apoio público.

Em outra instância, o recém-empossado prefeito do Rio, Marcello Crivella, se mostra bastante inexperiente.  As reportagens do Globo mudaram, desde os últimos dias de expendiente do prefeito Eduardo Paes, de elogios categóricos à gestão financeira (com base em um estudo que ele mandou fazer, possivelmente pago pelos nossos impostos) para constantes críticas ao Crivella. Sua igreja evangélica é dona da TV Record. Ano passado, a Record levou ao ar uma telenovela de grande sucesso, Os Dez Mandamentos.

Temos visto, de fato, demoras e reviravoltas por parte do novo prefeito, para nomear secretários e outros subordinados. Crivella também peitou (sem desfecho, por enquanto) as empresas de ônibus, concessionárias, sobre o proposto aumento anual da tarifa — ato inimaginável na administração anterior. Seu vice, Fernando MacDowell, tem longa experiência na área de transporte pública. Como secretário de transporte pública, ele trouxe para a equipe o jovem blogueiro, ciclista a craque em história do transporte, Atílio Flegner.

Já que o governo Paes se recusou a dar entrevistas para o livro desta blogueira, Flegner foi um de várias fontes que acompanham o transporte, que contribuiram à tarefa praticamente impossível de elaborar um panorama dos retalhos que constituem o transporte público metropolitano do Rio.

MacDowell e Crivella têm se mostrado mais abertos do que seus predecessores, ao comentar ideias e prioridades. Resta saber se terão a capacidade de botar a cidade em movimento novamente, diante das arraigadas (e cada vez mais fracas) interesses das empresas de construção e de transporte. Crivella disse que tentará terminar o BRT Transbrasil, apesar dele, ao ser paralelo, brigar por passageiros com um linha da SuperVia, concessão estadual. Metade das obras da prefeitura estão paralisadas.

Todos os locais olímpicos –inclusive o estádio do Maracanã — estão fechados, aguardando novos concessionários ou gestão terceirizada . Grande legado, dizem muitos cariocas.

O que mais? Bem, quando sua blogueira publicou esse post, originalmente em inglês, o último problemaço era a febre amarela. Já temos uma nova tragédia, porém: a repentina morte de Teori Zavascki, ministro do STF, relator da Lava-Jato para quem disfruta de foro privilegiado, num acidente aéreo.

Não se trata de mais uma pitada de incerteza sobre tudo que já foi relatado aqui.

Alguns observadores comparam o Brasil aos Estados Unidos. A desigualdade e a polarização em ambos países, dizem, faria surgir aqui candidatos no estilo Trump. São Paulo já tem um homem de negócios pode-tudo, como seu novo prefeito. Não podemos esquecer, porém, que foi o crescimento das classes médias em países como o Brasil que abalou a classe média norte americana. O “Belíndia” do economista Edmar Bacha ainda serve, sobretudo quando levamos em conta as cadeias do país. A demanda popular por serviços públicos adequados, que veio para o centro das atenções durante as manifestações de 2013, é um fenômeno novo e um fator político que dificilmente irá sumir.

Qualquer político, além de ter que preservar a pele, está diante de perguntas cabeludíssimas: como refazer um pacto social e ainda manter inteiro um país, estado, município? Como efetuar reformas necessárias (como mudanças na Constituição em estruturas políticas, de imposto, de previdência e das polícias) — sob ameaças de desordem e violência, com uma escassez de receitas e visionários e cada vez menos condições para a manutenção da desigualdade?

Apesar de um cenário mutável e incerto, o Rio — e o Brasil–  podem abrir mão de uma técnica tradicional de sobrevivência: o bom e velho “empurrar com a barriga”. Desta vez, porém, empurrar os desafios com a barriga pode ser especialmente doloroso– se não fatal.

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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