Não é bem assim
Para quem gosta de uma teoria de conspiração, trata-se de um complôt de inteligência, uma troca clandestina de informações sobre o que acontece no Brasil, uma “CIA das sombras”. A Stratfor, de acordo com o jornal Correio do Brasil, estaria trocando informações com o jornal O Globo.
“A Stratfor diz ser uma empresa de análise geopolítica, com um modelo de negócios baseado em assinaturas. Na prática, ela presta um serviço semelhante aos de agências governamentais de inteligência,” diz uma matéria no site da UOL.
Pode ser que seja o caso em algum outro lugar. Mas não no Rio de Janeiro. Muito pelo contrário. Falta inteligência.
Wikileaks publicou relatórios Stratfor que qualquer um pode assinar, pagando uma taxa. No momento até, por causa do vazamento, a Stratfor está disponibilizando seus relatórios de graça. Wikileaks publicou também emails internos da Stratfor. Assim, ficamos sabendo que quem responde pelas notícias brasileiras é Allison Fedirka. De acordo com a LinkedIn, Allison mora na Argentina e de fato trabalha pela Stratfor.
Não está claro se é ela quem escreve os relatórios sobre o Rio de Janeiro. Mas a quem quer que seja falta informação e pensamento crítico. Será que algum estrangeiro que mora aqui pensa que a palavra favela realmente quer dizer self-made, como afirma um relatório da empresa?
Há muita coisa que está certa nos relatórios sobre a pacificação do Rio de Janeiro. Sim, os policiais são corruptos e mal pagos. Sim, a policia carece de gente suficiente para cobrir as necessidades da cidade com rapidez e agilidade.
E há algumas coisas, além de etimologia, erradas. A expansão da pacificação, sobretudo para a Rocinha, não suscitou uma reação violenta de parte dos traficantes de droga, como a Stratfor previa em fevereiro do ano passado. E a questão de milícias não se resume à substituição dos narcotraficantes por elas nas favelas ocupadas, como a empresa leva seus assinantes a crer.
A leitura de alguns relatórios da Stratfor pode até ser um exercício saudável para quem vive e trabalha no Rio de Janeiro. Neles, fica evidente uma visão falha. Esse padrão pode ser atribuído à mitologia ainda muito prevalente entre os cariocas.
De acordo com essa visão, as favelas cariocas abundam em criminosos que não têm outras opções de vida, pessoas que sempre serão criminosos, até a prisão ou a morte. As facções de narcotraficantes são monolíticas e todo poderosas. Os moradores de favela que não são bandidos são cordeiros submissos, incapazes de fazer uma leitura adequada de eventos e pessoas.
Tal visão leva a textos que mais parecem roteiros de cinema do que relatórios de inteligência:
Somente [com a integração da favela com o resto da cidade] é que o governo terá uma chance decente de ganhar a confiança dos moradores de favela, que atualmente tendem a confiar mais na proteção dos narcotraficantes do que na polícia. Na verdade, o apoio dentro da favela é precisamente o que permite que os traficantes de droga sobrevivam e sustentem seus negócios. Muitos dos traficantes que são perseguidos na repressão atual ficam de low-profile, se escondendo em casas na favela e fugindo para outras favelas, geralmente por túneis de esgoto e então para a densa floresta dos arredores, onde podem reconstruir suas redes e continuar os negócios. Do mesmo jeito que fazem os combatentes em uma insurreição, os membros de organizações criminosas tipicamente evitam o combate. Ficam quietos e transferem a operação para outro local até que a situação permita sua volta.
— de um relatório Stratfor de 3 dezembro 2010.
O pobre autor desses relatórios (sim, há muita coisa certa aí, mas a confiança no traficante é mais medo do que confiança) não pode ser culpado. O que mais falta — tanto entre observadores estrangeiros como entre cariocas– é uma leitura crítica da situação atual no Rio de Janeiro e de suas raízes históricas. Tentar entender o que realmente acontece é crucial para a formulação de políticas públicas adequadas, e para as escolhas políticas que fazemos.
Um post recente deste blog expôs algumas ideias novas sobre o crime urbano e sua repressão. Pode ser, por exemplo, que o telefone celular tenha tido um papel enorme na retomada dos territórios por parte da polícia militar, das mãos dos traficantes. Quem sabe a falta de reação desses se deve à facilidade com a qual hoje conduzem seus negócios sem recorrer a vielas, bocas e armas.
Pode ser que as facções não sejam tão poderosas como pensamos. O excelente livro A Cultura é a Nossa Arma: Afroreggae nas Favelas do Rio, já assinala um enfraquecimento delas, lá pelos idos de 2005. Quem diz que os carros e ônibus incendiados por eles em 2010, que suscitaram a invasão do exército no Complexo do Alemão e a Vila Cruzeiro, não eram sinais de desespero, em vez de força?
Qual o verdadeiro motivo do crescimento do mercado de crack? Seria realmente apenas porque um colega paulista de cadeia do traficante mor Fernandinho Beira-Mar o convenceu que seria um negócio lucrativo?
E ainda não sabemos a história toda sobre essas facções e seus aliados do asfalto. Temos alguma noção sobre as ligações entre milicianos e políticos, graças à existência do deputado estadual Marcelo Freixo. Mas e as ligações entre traficantes de droga, políticos e outros? Lembra disso? Resta muito a contar.
E pode ser que esteja acontecendo uma profunda mudança social no Rio de Janeiro, com importantes reflexos atuais e futuros. É uma mudança social com raízes lá atrás, cuidadosamente administrada (para não dizer reprimida) desde a Guerra dos Canudos (1896-7).
No debate mais recente do grupo OsteRio sobre a cidade, o ex deputado e ministro Márcio Fortes observou que a década de 1970 foi tão auspiciosa para nossa cidade quanto a atual. Entre 1970 e 1977, ele disse, o investimento foi o triplo do de hoje. Fizeram-se a Ponte Rio-Niterói, o Metrô, os túneis para a Barra da Tijuca, e parte do elevado perimetral que esta para ser demolido agora.
Era a época da ditadura militar, que surgira em 1964 para segurar uma temida revolução à la Cuba.
Na esteira dos investimentos urbanos do milagre brasileiro, ainda com um governo autoritário em Brasília, chegou em 1983 ao governo estadual do Rio o trabalhista e populista Leonel Brizola, recém retornado do exílio.
Naquele tempo a Zona Sul era da Zona Sul, que, lembrou Fortes, “reagiu com rancor à linha 416, que era primeira linha de ônibus que passou pelo tunel Rebouças, trazendo suburbanos para a praia da Zona Sul”.
De acordo com Fortes, a reação da classe média à invasão dos suburbanos se refletiu na imprensa carioca, que dava ampla cobertura aos perigos urbanos– afugentando as pilares da economia local para São Paulo. “Uma grande responsabilidade por espantar os bancos e a indústria foi da imprensa,” ele disse, “que para castigar o Brizola castigou o Rio de Janeiro com aquele negócio do arrastão, a imagem da desordem.”
A Cuba acabou não vindo para o Brasil. A economia carioca virou cinzas. Mas nos últimos cinquenta anos, a linha 416 se multiplicou exponencialmente. Não há como frear a invasão hoje; mesmo assim, políticos e imprensa continuam sua cautelosa administração de demandas.
Tomar cuidado para não acreditar em lorotas de tiras e bandidos é um passo fundamental para não estragar o nosso momento auspicioso. O Rio real é um lugar complexo.
Clique aqui para um artigo em inglês na revista The Atlantic, sobre Stratfor e Wikileaks.