Festa internacional de literatura numa favela pacificada
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“É cretinice!” desabafa uma mulher na fila para a Kombi que vai a Santa Teresa, partindo do Largo do Machado. “Um monte de política.” Ela faz cara feia, recrutando uma penca de rugas. “Não há saneamento—e fazem– isso!”
Isso é a FLUPP, a Festa Internacional de Literatura das UPPs.
À medida que o Rio se afasta de uma longa fase de decadência, palpiteiros não faltam. Os acomodados se tornam críticos.
A bordo de uma abafada, acabada e barulhenta Kombi circa 1985, com porta de correr automática e ao som de um DVD de pagode, a subida para o morro é meio parecida com a falta de saneamento – junto com — “isso!”.
E assim, entre os dias 7 e 11 de novembro, no Morro dos Prazeres, uma das 28 favelas pacificadas até agora, sem saneamento (e com banheiros químicos para os participantes da festa), aproximadamente 2.400 pessoas curtiram cinco dias de debates, apresentações, palestras e celebração de livros, palavras e leitura. Desse número, noventa haviam já participado de quatro meses de preparativos em 13 favelas, a FLUPP Pensa. Essa série de mesas literárias e workshops selecionou 43 escritores cujos trabalhos acabaram de ser publicados em uma antologia lançada na FLUPP.
Por uma coincidência curiosa, o saneamento básico também é um problema na festa literária anual mais conceituada do país, realizada em Paraty. Lá, a maré sobe e o esgoto se insinua, apesar dos investimentos feitos por moradores que incluem a família Marinho da Rede Globo e herdeiros da linhagem imperial portuguesa, a família Orleans e Bragança.
Aquela festa, a FLIP, realizada todo mês de julho ou agosto desde 2002, atrai dezenas de milhares de bibliófilos (incluindo nomes como Salman Rushdie, Ian McEwan, Gary Shteyngart, Nadine Gordimer e Isabel Allende) à histórica cidade colonial entre o Rio de Janeiro e São Paulo, e já gerou muitas outras, em cidades como Ouro Preto e Porto de Galinhas.
Ir à FLIP pode sair caro, somando gastos com passagem, estadia, comida e transporte. A FLUPP, ao contrário, é de graça – graças a patrocinadores como a Petrobrás, o Ministério da Cultura, o governo do estado do Rio de Janeiro, a Vale, o Itaú, o Instituto C&A, a Firjan e as instituições culturais britânica, portuguesa e espanhola. O evento custou R$ 2 milhões.

Os organizadores da FLUPP Toni Marques, Júlio Ludemir e Écio Salles, com a Baía da Guanabara de fundo
A Kombi ziguezagueia na subida para Santa Teresa, parando para deixar passageiros nas entradas de favelas, das quais há mais ou menos quinze nesse bairro alto, que se estende do centro da cidade até o Cosme Velho.
Por fim, grafiteiros empoleirados em escadas e música para requebrar acolhem quem chega, um tanto enjoada, ao pé do Morro dos Prazeres.
À distância de uma curta caminhada para cima está uma mansão no estilo arte déco, o Casarão, agora um centro cultural. Logo mais à frente, uma escadaria especialmente grafitada para a festa, uma praça de alimentação improvisada e, finalmente, a área principal da FLUPP, a quadra da comunidade. Não tem cheiro de esgoto, e lixeiras rotuladas e enfileiradas estão disponíveis para receber lixo reciclável. Ainda assim, cachorros catam comida do chão.
Dentro da quadra, ventiladores de pé lançam um spray de água gelada ao ar, e duas paredes estão cobertas de samambaias, para dar um alívio ao calor. Tem um bar vendendo álcool! Ao lado, um barbeiro apara cabelo, fazendo desenhos e letras nas cabeças, como era moda nos Estados Unidos na década de 1980 e agora é moda aqui, atualmente, entre os dançarinos de passinho e outros jovens de favela. Enquanto isso, o escritor Francisco Bosco, a jornalista Marta Porto e Luiz Eduardo Soares, antropólogo e ex-secretário de segurança pública do estado, conversam sobre conhecimento e sabedoria diante de um público de todas as idades.
“Está tudo se encurtando,” comenta Monique Nix,uma jovem escritora do FLUPP Pensa, durante a sessão de perguntas e respostas. “De romances ao Twitter. Para onde vamos com isso?”ela pergunta aos palestrantes, integrantes de um elenco que conta com os notáveis escritores brasileiros Ariano Suassuna e João Ubaldo Ribeiro, o rapper líbio MC Swat, o escritor alemão Thomas Brussig, o escritor mexicano Juan Pablo Villalobos, o poeta palestino Najwan Darwish, o escritor espanhol Manuel Vilas e o britânico criador de jogos, Naomi Alderman, dentre muitos outros.
Lindacy Menezes, uma empregada doméstica de 55 anos de idade, nascida em Pernambuco e moradora da Rocinha, tem sua vez ao microfone para dizer que os workshops da FLUPP a ajudaram a começar a escrever sua história de vida. “Não conheci meus pais,” ela explica, antes de ler alegremente, em voz alta, uma folha escrita à mão. Depois, ela conta que reduziu seus dias de serviço de cinco para três, para poder escrever. “Meu marido e eu ganhamos o suficiente, ,” ela completa.
Mais tarde, o poeta Geraldo Carneiro demonstra uma euforia que, apesar de certamente não ser compartilhada pela raivosa mulher na fila da Kombi, provoca reflexão: “Tudo de valor nesta cidade vem da favela”.
E sente-se a comunhão no ar, quando a poeta e performer afro-brasileira Elisa Lucinda, usando um curto vestido vermelho de chamar a atenção de qualquer um, diz que quando alguém fala para ela “não repare” quando adentra uma casa, ela responde “eu reparo, eu reparo tudo”.
As histórias na antologia mostram que ela não está sozinha, com descrições de drogas, armas, abuso sexual, de como é ter cabelo ruim e da vida nas mãos do “Robocop”.
Seguindo o precedente da FLIP, os organizadores da FLUPP mobilizaram os moradores do Morro dos Prazeres durante os quatorze meses de preparativos para o evento. Metade da equipe de cem pessoas que trabalhou no festival era composta por moradores.
Écio Salles, um dos organizadores da festa, espera que o governo federal brasileiro elabore uma política pública nacional para apoiar festas literárias como essa, para espalhá-las por todo o país.
Enquanto isso, é verdade que falta atenção ao saneamento básico. O jornal O Globo relata que apenas 28% de todos os municípios brasileiros têm uma política de saneamento básico (o que não significa necessariamente que eles tenham tratamento e disposição do esgoto adequado para seus moradores).
O grupo de ativismo digital MeuRio tem exigido que a empresa de esgoto e água do Rio, CEDAE, forneça saneamento 100% aqui.
Um pedido do RioRealblog à CEDAE para uma lista de obras de saneamento em favelas (que abrigam um quinto da população), atuais ou planejadas, levou a uma troca surreal com um assessor de imprensa da empresa. “Ah, tem muitas,” ele disse numa conversa telefônica inicial – para em seguida, enviar uma descrição da admirável despoluição das lagoas da Barra e do Recreio dos Bandeirantes, da Lagoa Rodrigo de Freitas e da Baía de Guanabara.
Ao ser lembrado que a pergunta era sobre favelas, ele logo enviou uma lista de comunidades onde a CEDAE está trabalhando para fornecer água. Ao ser lembrado que a pergunta era sobre esgoto, ele disse que o esgoto em favelas era responsabilidade do município. De qual secretaria?
“É Rio Águas, acho” ele disse no último e-mail. Essa fundação realmente cuida de tratamento de esgoto na Zona Oeste, de acordo com o website. Porém, sua função principal é a prevenção de enchentes…
“O saneamento é importante,” diz Salles, organizador da FLUPP, no conforto de uma sala com ar condicionado, para palestrantes, quando perguntado sobre o que diria à mulher medonha na fila da Kombi.”Saúde e educação, também.” Ele suspira. “Não sei fazer saneamento. Não ter uma coisa não quer dizer que você não poder ter outras. O conhecimento pode formar pessoas mais preparadas para cobrar o saneamento.”
Após a publicação deste post em inglês, RioRealblog teve a oportunidade de perguntar tanto à representante do PAC, ao nível estadual, Maria Gabriela Bessa; e à presidente do Instituto Pereira Passos, Eduarda La Rocque, do município, sobre o saneamento básico nas favelas. O PAC, disse Bessa, já fez obras de saneamento e fara outras, nos locais onde trabalha: Complexo do Alemão, Rocinha, Manguinhos e Pavão-Pavãozinho. La Rocque disse abertamente que a cidade ainda precisa enfrentar a questão em ampla escala, explicando que em 2007, o então prefeito César Maia assumiu a reponsabilidade pela coleta e tratamento de esgoto nas favelas, mas que pouco foi feito desde então. Quem sabe, é uma boa ideia mesmo manter o nariz num livro.
Tradução de Rane Souza
Bravo Julia!
Obrigada, Tite!