Nós somos Santa Maria, mas somos realmente iguais uns aos outros?

Mentalidade de vilarejo – em transformação

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Night in Rio

Noite no Rio

É sempre útil lembrar que até uns dois anos atrás, os ônibus paravam no Rio de Janeiro para quem simplesmente levantasse um dedo. A vida seguia como se todos se conhecessem, uma cidade de primos e tias e colegas de turma. Muitas vezes, essa era de fato a realidade.

O trágico incêndio em uma casa noturna no sul do Brasil indica que tal fenômeno está presente em praticamente todo o país. Em todos os níveis da sociedade, uma rede de contatos pessoais se sobrepõe a instituições e leis. O comportamento, portanto, parte do pressuposto de que nem todos os brasileiros são iguais.

A família, os colegas de trabalho, amigos e contatos são mais importantes do que as outras pessoas. E, assim, o bem comum fica relegado a segundo plano. Bem como quase tudo que reside  na esfera pública. É por isso, por exemplo, que algumas das melhores obras de arte moderna brasileira se encontram em casas particulares.

A confiança suprema no círculo de convivência se realimenta, pois aqueles que administram as instituições frequentemente agem como se elas atendessem um grupo relativamente pequeno, não a um município, estado ou país. E, portanto, a continuidade de políticas públicas cede aos interesses dos sucessivos grupos dominantes .

Mercedes Guimarães, dona da casa na zona portuária sob a qual foram encontrados em 1996 aproximadamente 30 mil esqueletos de escravos, diz que nunca entregou a propriedade aos cuidados de uma entidade governamental, por temer um apoio inconsistente. Como se fosse para confirmar as expectativas dela, perto do museu que é o “cemitério de escravos” alojado na casa de Mercedes Guimarães, a prefeitura do Rio supostamente acaba de deixar sete contêineres cheios de artefatos arqueológicos raros e valiosos da época da escravidão ,descobertos durante escavações recentes feitas para a revitalização da região portuária, sem qualquer plano para o manuseio ou guarda deles.

O clã promove seus interesses e protege seus membros. O grau de proteção oferecido é maior no topo da pirâmide socioeconômica e menor na base. Tradicionalmente, as tragédias afetam brasileiros com menos acesso a um grupo poderoso. Logo, temos o fatalismo.

Desrespeito às normas e leis de segurança; falta de fiscalização pelas autoridades municipais

A revista Veja desta semana reporta:

Nas principais cidades brasileiras, há quadrilhas de funcionários públicos, despachantes e policiais especializadas na cobrança de propinas e no comércio de alvarás. Empresários da noite em São Paulo contam que a morosidade e a burocracia os obrigam a contratar “consultorias” que se dedicam à obtenção de alvarás. Oficialmente, elas orientam na colocação correta dos extintores de incêndio e em questões sanitárias. Na prática, fazem, também, o serviço sujo de negociar a propina com os fiscais municipais para liberar o funcionamento das casas noturnas. “Trata-se de corrupção com nota fiscal”, diz um empresário paulista. O valor a ser pago vai de 10 000 a 100 000 reais, dependendo do tamanho do estabelecimento. Para evitar o incômodo, muitas casas simplesmente ignoram a necessidade de alvarás e abrem as portas sem sequer solicitá-los. Seus donos preferem pagar eventuais multas a gastar com a propina. Atualmente, apenas um terço das casas noturnas da capital paulista está em dia com a inspeção dos bombeiros.

E assim, no Rio de Janeiro em outubro de 2011, uma explosão de gás aconteceu em um restaurante na Praça Tiradentes, matando quatro pessoas. Depois disso, três prédios desabaram no início de 2012, logo atrás do Teatro Municipal, matando 22 pessoas. No primeiro caso, os donos estocavam botijões de gás, o que é proibido; no segundo, os operários que faziam uma reforma removeram pilares de sustentação sem o conhecimento da prefeitura.

Na quinta-feira passada, o jornal O Globo noticiou que o Rio tem 49 locais públicos operando sem a autorização do corpo de bombeiros. Deste total, 36 são administrados pela prefeitura, o restante estando sob a égide do estado. Dentre esses locais está a conceituada Escola de Artes Visuais do Parque Lage, a sofisticada galeria de arte Casa França-Brasil e o Teatro Carlos Gomes, além de outros espaços vitais à vida cultural da cidade. De acordo com o jornal O Globo  de sábado passado, todos esses locais serão fechados por vinte dias, até que as inspeções sejam efetuadas.

(Resta saber se os fiscais do corpo de bombeiros trabalharão durante o carnaval, que começa no dia 8, e praticamente paralisa qualquer atividade séria por dez dias).

No entanto, de acordo com o jornal, o fechamento dá margem para que alguns locais funcionem sem alvará após os vinte dias, desde que não ofereçam risco aos clientes e que os reparos necessários estejam encaminhados. Muitos locais mal equipados já estavam neste limbo, fato que provavelmente levou o recém-saído secretário municipal de cultura, Emílio Kalil, a dizer, conforme citação em O Globo, “Estou absolutamente surpreso com essa notícia. Achava que eles tinham autorização, nunca haviam me passado essa informação.”

Na quinta-feira passada, a prefeitura fechou mais de cem casas noturnas privados.

Agora os cariocas começam a reparar nas saídas de emergência – inclusive além de seus círculos e territórios particulares (e mesmo nestes locais, raramente há escadas de incêndio).

Na semana passada, usuários do Facebook compartilharam uma foto de pilares corroídos no elevado do Joá, que conecta São Conrado à Barra da Tijuca, exigindo que o prefeito Eduardo Paes amplie a reforma planejada. Em resposta a isso ou por outros motivos, Paes anunciou que investirá mais. A Escola de Engenharia da UFRJ, COPPE, que realizara uma análise estrutural, não comentou publicamente a decisão. O estudo feito pelo COPPE indicou que o Elevado corre perigo de desabar e que deveria ser completamente reconstruído.

A tough transition, in the light of day

Transição difícil, à luz do dia

É possível mudar?

Muitos brasileiros temem que as respostas rápidas e enérgicas, em todo o país, ao incêndio na casa noturna em Santa Maria, sejam apenas fogo de palha, desaparecendo assim que o carnaval ou qualquer outro evento ocupe as mentes e os corações do povo. Pois o sistema de clãs tende a se perpetuar.

Porém, a mudança socioeconômica, tanto no âmbito nacional quanto no Rio de Janeiro, está começando a desafiar esse sistema, dando motivos para se acreditar que a sociedade brasileira está lentamente começando a trocar os interesses privados pelo bem comum. À medida que milhões deixam a pobreza para trás e ganham acesso ao mercado formal de trabalho, tornando-se usuários competentes de tecnologia, viajando, consumindo – e alimentando a economia nacional – membros dos grupos tradicionalmente mais poderosos encontram mais dificuldade ao tratá-los como cidadãos de segunda classe. Enquanto a pirâmide socioeconômica se alarga, o abismo sociocultural diminui.

“Nós somos Santa Maria” era o título de muitos artigos e posts do Facebook publicados na semana passada.

E à medida que ocorre a virada do Rio de Janeiro, o velho fatalismo cede a novas possibilidades – e responsabilidades. O grupo de ativismo digital Meu Rio lançou semana passada uma campanha para interditar o elevado do Joá. Recentemente, protestos populares alteraram os planos do estado e da prefeitura de demolir um prédio do século XIX que já abrigou o Museu do Índio (apesar disso, não se sabe para onde irão os índios que vivem acampados lá), e no final de dezembro, uma excelente escola pública que estava no caminho das escavadeiras sofreu uma reviravolta parecida (ainda que temporária). Mesmo enquanto mofam os achados arqueológicos encontrados na região portuária, pela primeira vez a prefeitura cercou o chafariz Saracuras localizado na praça General Osório, construído no século XVIII pelo mestre Valentim,  para protegê-lo dos foliões do carnaval. Isso envia uma mensagem sobre o valor daquilo que ocupa os espaços públicos – que quem sabe chegue até os vândalos que depredaram o chafariz no final do ano passado.

É importante destacar que muitos dos estudantes universitários mortos no incêndio não eram da cidade de Santa Maria, onde está localizada uma grande universidade federal. Eles vieram de cidades pequenas no estado do Rio Grande do Sul, motivados para subir na vida, com empregos nas áreas de engenharia, medicina veterinária, agronomia e odontologia. Faziam parte de uma geração que poderia ser considerada o baby boom brasileiro, finalmente com renda disponível suficiente e acesso a bolsas de estudo e cotas, para poder obter um diploma universitário e curtir com amigos shows em casas noturnas.

Essa é a geração que traçará o caminho do Brasil como democracia e economia emergente, e agora está marcada por uma enorme tragédia que inegavelmente decorreu da prevalência de interesses privados sobre o bem comum.

A transição de um vilarejo de clãs para uma metrópole com instituições confiáveis e imparciais não chega a ser, de modo algum, um caminho fácil e sem obstáculos. Como que para comprovar isso, na semana passada,  um cão resolveu passear na ponte Rio-Niterói, de oito pistas e treze quilômetros. Não é a primeira vez que isso acontece nem deve ser a última.

Tradução de Rane Souza

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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