Tempos caóticos, esses.
Mariana Albanese morou dois anos no Vidigal, favela da Zona Sul. Paulista transplantada, apaixonada pelo estilo de vida do morro, teve a oportunidade de acompanhar a chegada da pacificação. Diz ela, num post hospedado no blog de Douglas Belchior, na página da revista Carta Capital, que, baixo o domínio do tráfico, os moradores dormiam de porta aberta. Não havia lixo nas ruas e o trânsito fluía bem. Depois :
Há os turnos. Turnos de caráter. O pessoal sabe se naquela noite é policial bem ou mal intencionado, e já sabe se vai ou não vai poder dar uma festa. Porque, sim: além da violência que todo mundo conhece, tem o dia a dia com o controle social extremo. A filosofia da pacificação parte do princípio que todo mundo é suspeito até que se prove o contrário.
Os moradores do Vidigal, como aqueles de muitas favelas cariocas, dependem do turno de caráter para saber a regra da noite. Mas não são os únicos no Rio a carecer de regras claras e confiáveis.
No momento estamos debatendo se é desejável, ou não, defender um bandido coibido por cidadãos, na ausência de policiais.
E na ausência de médicos, pode-se chamar estrangeiros e pagar um salário menor do que um brasileiro iria ganhar?
Rojão tem lugar fora de jogo de futebol e festa junina, ou não?
Pode-se dizer à empregada que precisa ficar até mais tarde, sem pagar hora extra?
Está certo cobrar R$ 3,00 para andar de ônibus, sem informar os detalhes da composição de preço?
Desde o fim do governo militar em 1985 (e, provavelmente, antes), o Brasil vai debatendo as questões do dia, vagando entre os interesses egoístas de indivíduos e grupos, por um lado, e o bem da nação, por outro. Prevalecem, em geral, os interesses menores. Mas pode ser que os debates de hoje tenham um caráter diferente. Acontecem em outro contexto.
“Há uma ruptura cultural,” disse o deputado estadual Marcelo Freixo recentemente, para o jornalista norte americano Wright Thompson, numa matéria que coloca os protestos de junho num contexto histórico. “Havia um senso comum no Brasil, de acreditar que as coisas no Brasil eram injustas e nunca seriam mudadas. Depois de tudo que aconteceu [em 2013], ninguém mais diz isso.” [tradução do inglês]
Durante décadas, sabíamos as regras. Agora, após a saída da pobreza de 40 milhões de brasileiros, não sabemos quase nada. Aliás, sabemos uma coisa sim: quem não fazia parte da economia formal, do jogo, há uma década, hoje tem acesso mais pleno ao direito à cidadania. E isso muda tudo. Não há volta.
Até então, a polícia desempenhava o papel de amortecedor, de corretor de interesses, entre ricos e pobres. Qual deve ser o papel dela, hoje, na favela, na praça pública e nos bairros?
É fácil concluir que o caos vá nos levar ao abismo. É fácil fechar os olhos à possibilidade de que o que ocorre, na verdade, é uma disputa por um território recém esvaziado. O território da ordem urbana.
Nenhuma força, quer seja a polícia, empresas e bancos, políticos, manifestantes, bandidos, ou a mídia já dominou esse território de maneira completa ou unilateral. É uma disputa contínua, de alianças sempre em evolução, visíveis ou não.
O desafio é chegarmos a um novo arranjo, mais adequado às necessidades da cidade, que muda não apenas no sentido socioeconômico, mas também recebe turistas como nunca antes. Sabemos que a violência policial e a corrupção, por exemplo, precisam diminuir. Há propostas para unificar as forças policiais e pela desmilitarização.
O caminho é cheio de pedras, declives, caminhos sem saída e reviravoltas.
Se iremos chegar à altura dos acontecimentos e como será o tal arranjo, ninguém sabe.
Mas não custa tentar. Imagina só depois da Copa.
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