Era uma laje no morro do Cantagalo, varrida por uma brisa marítima. Porém, no meio de músicos de uma gama de idades, moradores e visitantes, conversando musicalmente entre si e com o público, criou-se no último dia 28 de março a sensação marcante de estar num esfumaçado clube subterrâneo no Harlem, anos 1930 ou 1940, de volta às origens do jazz.
Praticamente não houve ensaio, confessou Leonardo Januario, 22 anos, fundador da escola de música Bela Arte Jazz, que produziu o evento. Em compensação, aconteceu um emocionante encontro de músicos, na maioria de instrumentais de metal, apoiados pelo contrabaixista David Nascimento, o baterista Mattheus Cruz e o pianista Jonathan Moreira. O guitarrista Rodrigo Medina acompanhou os alunos, também.
Para ajeitar as participações, Leonardo saltitava pela laje, contornando o trombone do convidado Paulo Nogueira, que tocava junto com o trompetista Darcy Cruz, ambos veteranos. Na hora de tocar, ele mesmo, Leonardo tirava por um instante a mão das teclas para fazer sinais aos colegas, facilitando os diálogos. Quando a jovem cantora Mariana Lisandro se apresentou — corajosa, sem amplificação, porque o microfone havia acabado de falhar –, do meio do público uma outra cantora, a experiente Thais Fraga, iniciou uma “conversa” com ela, através do canto scat.

Ao rastrear o som que ouvia pela favela, o jovem trompetista francês Antoine Jacquet encontrou a escola Bela Arte Jazz, onde hoje dá aula
Como solista, sobretudo na flauta, Leonardo passava profundidade e ousadia. Bem quando parecia que a música ia cessar, ele a levava a algum lugar inesperado, certeiro.
Era impossível ficar imóvel e difícil lembrar de alguma experiência semelhante de ouvir jazz no Rio de Janeiro — ou em qualquer parte. Será que aquela energia do improviso que permeia a vida na favela fazia uma contribuição especial?
O morro do Cantagalo entrou no programa de pacificação em dezembro de 2009. Nos últimos meses, houve confrontos esporádicos entre polícia e traficantes, supostamente devido à saída da prisão de um traficante. As dificuldades da pacificação dos morros Pavão-Pavãozinho/Cantagalo se somam aos problemas que surgiram desde o ano passado, na favela da Rocinha e no Complexo do Alemão. Amanhã, o estado do Rio de Janeiro, com a ajuda das forças armadas do governo federal, parte para o desafio da ocupação do Complexo da Maré, considerada indispensável pelo governo para a realização da Copa do Mundo, que começa em junho. A pacificação é uma questão chave da eleição para governador em outubro.
O acesso ao evento Jazz na Laje foi facilitado por jovens voluntários, que a partir da estrada principal da favela indicaram o caminho — com direito a muitas escadas — aos visitantes.
Há dois anos, Leonardo — que começou a estudar saxofone aos 17 anos — fundou a escola Bela Arte Jazz sob o guarda-chuva da pioneira Agência de Redes para a Juventude, uma espécie de incubadora de startups para jovens de favela, com recursos da Petrobras. Hoje, a escola funciona sem apoio institucional, atendendo a uma dúzia de alunos. Recentemente, Leonardo instalou um teto na laje.
Flautista, saxofonista, aglomerador, maestro, arranjador, animador, professor, empreendedor. O talento do Leonardo — e o encontro de tantos outros músicos e ouvintes — iluminou a noite. No próximo evento, é capaz de a laje do tio dele, no morro do Cantagalo, ficar pequeno.
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