O czar da segurança pública do Rio em fim de mandato: mocinho ou otário?

No livro de memórias, Todo dia é segunda-feira, José Mariano Beltrame faz um relato insider da pacificação — e trata de muito mais que vale a pena ler

For Outgoing Rio public safety czar: good guy or sucker?, click here

Fez a parte dele, diz

Ele não é carioca. Veio de Santa Maria, cidade gaúcha onde, no ano passado, 242 jovens morreram em um incêndio de boate

A política no Rio de Janeiro  é tão carregada de decepções e traições que o máximo que muitos cariocas dizem do Secretário de segurança pública, cujo tempo recorde de sete anos no mandato supera seus antecessores em quatro anos, é que, ao menos, ele parece ser honesto.

E, então, eles apontam, de maneira ranzinza, que o chefe dele, Sérgio Cabral (que renunciou ao mandato em abril para ajudar seu vice-governador a fazer bonito nas eleições de outubro) não tem um histórico tão imaculado. Como ele, Beltrame, poderia realmente ser honesto…???

O clima é sombrio com a chegada da Copa do Mundo (sobretudo nas manchetes do jornal O Globo, que tendem a apontar as falhas da presidente Dilma) e pode piorar bastante à medida que se aproximam as eleições presidenciais e estaduais. Sobretudo, se o Brasil perder a Copa e se as taxas de criminalidade continuarem a aumentar. Ou não, se o Brasil, um país cada dia mais bipolar, ganhar o campeonato, trazendo redenção plena a todos nós.

Diante do que ainda está por fazer, com tudo que está errado, acabamos esquecendo como era a vida antes de Beltrame assumir o posto e diminuímos a magnitude do que ele e a equipe dele realmente fizeram:

A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, a primeira do país, criada no começo do século XIX por Dom João VI e conhecida na época como Guarda Real da Polícia, vivia um marasmo. Com o peso da tradição de dois séculos, trazia mazelas prejudiciais até hoje. Eu me perguntava: os resultados têm sido satisfatórios e nos autorizam a repetir as velhas fórmulas? Se eu reproduzisse o que se fazia há 200 anos, obteria os mesmos resultados por mais dois séculos.

Até 2008, a política de segurança pública consistia, basicamente, em reagir a denúncias da imprensa, invadir favelas esporadicamente e depois sair. Os comandantes de batalhões eram nomeados por motivos políticos. As estatísticas de crimes ainda demoram dois meses para serem disponibilizadas (e, como Beltrame ficou sabendo, em Los Angeles são atualizadas instantaneamente).

O desafio dos policiais no primeiro filme Tropa de Elite, que, para conseguir trabalhar, precisam sair catando peças para a viatura, era real. Beltrame conta que às vezes três carros eram depenados para que um funcionasse.  Além de mexer no quesito das viaturas – e o de computadores, e muito mais em termos de equipamento e pessoal, Beltrame e uma equipe de estrategistas criaram a pacificação.

É interessante que, a despeito do objetivo declarado de redução da violência (e não do tráfico de drogas), o secretário fala, em suas memórias, do território como estratégia para enfraquecer as gangues de narcotráfico:

Desde muito cedo, eu pensava que a lógica para implodir o poder do traficante era abalar a estrutura do território. Se a droga é apreendida, o bandido compra mais. Se ele vai preso, em segundos já tem um substituto. Por outro lado, se perde o território, que é protegido por armas, fica vulnerável. Era o que me vinha à cabeça: acabar com aquilo que sustentava as facções e seus negócios – o domínio do território imposto por armas de guerra.

Seria crucial, para o futuro da pacificação, descobrir em que medida a perda de território realmente enfraqueceu o tráfico de drogas. Roberto Sá, Subsecretário de segurança pública, quando perguntado sobre isso em uma entrevista recente com o RioRealblog, destacou que aumentou a detenção de traficantes por outros crimes, indicando uma troca de atividade. Ele apontou também uma subida no preço dos fuzis. Aparentemente, não se sabe muito sobre os preços das drogas.

Beltrame escreve sim que os traficantes adequam o produto à demanda. Quando necessário, eles vendem papelotes menores de cocaína ou optam por vender crack. Ele acredita que as armas realmente irão sumir desse mercado aos poucos.

Alguns analistas observam que o domínio de território aumenta os custos do traficante. Pode ser que, em resposta à pacificação, os traficantes mais espertos tenham diminuído a estrutura e estejam faturando mais do que nunca, a partir de algum apartamento em Botafogo.

Muitos cariocas acreditam que nada está sendo feito com relação às milícias, cujas atividades surgiram na década de 1990, e que hoje dominam uma fatia significativa da vida política local.

Já é difícil chegar a alguma conclusão definitiva sobre impacto da Secretaria nas taxas de criminalidade, considerando que sofreram uma queda inicial e um recente aumento. O cidadão também pouco percebe o impacto dos policiais no tráfico de drogas, uma atividade de caráter nebuloso, num contexto em que ocupações e tiroteios em favelas são mais dramáticos e mais noticiados pela imprensa do que prisões, julgamentos, sentenças (e a libertação de detentos). O impacto da Secretaria de segurança pública sobre as milícias é ainda mais obscuro.

Não se trata de ocupações com tanques e helicópteros. Abater as milícias requer longas investigações, conduzidas pela Polícia Civil. Beltrame relata as dificuldades ali encontradas e conta como a legislação federal teve que ser alterada para enquadrar policiais de folga que extorquem moradores e comerciantes. Descreve o surgimento das milícias, o envolvimento delas na polícia e a prisão de figuras- chave em 2008. E, sim, ele é honesto:

O grande grupo de milícia no Rio é o de Jerominho, Natalino e o do ex-policial Ricardo Teixeira da Cruz, o Batman, todos presos de 2008 para cá. Esse bando se intitula Liga da Justiça e, apesar da saída de circulação de seus três chefes, continua atuando na Zona Oeste da cidade. Antes da prisão deles, dominava cerca de 1,2 milhão de pessoas em Campo Grande. Só posso classificar como aberração a existência desse Estado paralelo imposto por antigos ou atuais servidores públicos. O maior grupo rival era o do ex-PM Fabrício Fernandes Mirra, também preso e condenado em 2010 a mais de 13 anos de detenção.

Seria útil saber mais sobre a dinâmica da continuidade das milícias no Rio, mesmo anencéfalas. Talvez tenha alguma relação com um item da proposta ao Congresso semana passada, apresentada por chefes de segurança pública de estados do sudeste: a instalação de sistemas eficientes de bloqueio de sinal de celular em todas as penitenciárias. Resta saber porquê isso ainda não aconteceu.

Essa proposta lida com outra área que Beltrame trata no livro: a falta de alinhamento entre a polícia e o sistema judiciário brasileiro. Em várias favelas, como nos morros do Cantagalo e Chapéu Mangueira, a pacificação desandou em função da libertação de traficantes de drogas, que retomaram suas atividades criminosas após a saída da cadeia:

Em 2012, 26 mil presos ingressaram nas penitenciárias do Rio; no mesmo período, a Justiça liberou cerca de 22 mil detentos. Isso é bom ou ruim?

O subsecretário Roberto Sá também falou desse assunto com o RioRealblog, destacando que a comunicação entre juízes e a polícia é por vezes falha, com pouca atenção ao bem estar da sociedade como um todo. A proposta feita na semana passada também aumentaria o tempo das penas e aceleraria os julgamentos com o uso de vídeo conferências.

Beltrame descreve alguns de seus momentos mais emocionantes dos últimos sete anos, como a invasão do Complexo do Alemão em 2010; e alguns dos mais difíceis, como a suposta tortura e morte de Amarildo, um pedreiro morador da Rocinha, por policiais da UPP. Em retrospectiva, parte do texto do Secretário pode parecer otimista demais.

Mesmo assim, ele não foge de assunto qualquer e traz contexto e informações importantes sobre o período que termina por agora. O livro de 190 páginas, que, devido às informações e às percepções de grande valor, merece ser traduzido para o inglês e o espanhol e publicado no exterior, é leitura obrigatória para qualquer um que acompanhe a política de segurança pública do Rio e que esteja refletindo sobre o que deve segui-la em janeiro de 2015.

Tradução de Rane Souza

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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