A Cedae saindo de cena?
Pela nossa experiência, o ceticismo é a atitude mais apropriada. Vamos cultivá-la.
E agora, uma boa notícia: existe uma possibilidade de que tenhamos, enfim, águas sensivelmente mais limpas no Rio de Janeiro metropolitano, em questão de anos.
Antes de mais nada vai a pergunta de sempre: o que aconteceu com os US$1 bilhão para a limpeza da baía de Guanabara, nos anos 1990? Foi para o bolso de quem, hein?
“Não trabalhei no Plano de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) e portanto não conheço detalhes, mas o que se pode inferir é que se tratava de dez por cento do que se precisava,” explicou o superintendente do Grupo Executivo de Gestão Metropolitana, Luiz Firmino Martins Pereira, ao RioRealblog. No começo deste mês, ele concedeu ao blog uma entrevista de conteúdo surpreendente. “Era muito pouco para o tamanho do problema”.
Esse é um dos motivos pelos quais, diz ele, ficamos com estaçãoes de tratamento e sem redes coletoras. O dinheiro era pouco e o sonho era grande demais. Geralmente, as redes coletoras para o esgoto representam 70% do custo de um sistema de saneamento. Não se dispunha dos recursos necessários.
Nem a Cedae nem o estado como um todo tinham a capacidade de contrair dívidas para esses. E a tarifa de esgoto, cobrada ao consumidor, não pagava a conta.
Durante décadas, a ideia era fechar o abismo entre a nossa realidade e a das metrópoles mais avançadas: depois da descarga, o dejeto seria coletado, tratado e devolvido ao meio ambiente. Pensava-se instalar o sistema ideal de coleta e tratamento de esgoto, um sistema que levaria o esgoto em tubulações separadas das de drenagem — as que levam as águas pluviais.
O sistema ideal — que, na verdade, nem existe em muitas cidades do primeiro mundo — requer atualmente, de acordo com Firmino, cerca de R$1.800 por habitante. Multiplica isso pelos doze milhões de habitantes da metrópole e você chega a R$ 21,6 bilhões, ou US$ 10 bilhões.
Pode ser que tenhamos tido tal quantia; perdura, portanto, a pergunta sobre o destino da grana. E há quem discorda das afirmações do Firmino sobre a falta de recursos. “A questão não é técnica e ou monetária; é política!” escreveu Adauri Souza, superintendente do
Instituto Baía de Guanabara, num email em reposta a perguntas feitas pelo blog. “Consideremos os 21 anos do início do PDBG e veremos que o processo nunca foi tratado como política de estado e sim como política de governo; cada um que chegou estabeleceu suas prioridades e metas o que resultou no quase nada que temos hoje”.
Com ou sem recursos adequados, a tarefa sanitária parece ter paralisado governos passados. “Mesmo que você tivesse o cheque na mão, levaria mais de uma década para a instalação das redes,” disse Firmino. “A obra não é trivial. Tem que rasgar as cidades [no entorno da baía] todas. Depois, boa parte da periferia não tem drenagem, está sem asfalto. É a ausência de urbanização, a existência de habitações subnormais. Como instalar um sistema coletor na Rocinha, por exemplo?”
Se o problema é tão espinhoso, por que prometemos em 2009 ao Comitê Olímpico Internacional, e a nós mesmos, que iríamos limpar 80% da baía até os Jogos de 2016?
“A meta de 80% certamente surgiu da vontade do momento e da espectativa se conseguir recursos”, diz Firmino.
Será que o quadro atual, tão negativo e esmagador de sonhos, seja um momento raro de realismo no Brasil? O começo de uma fase de realizações pé-no-chão? (Será que o programa Morar Carioca não sofreu do mesmo amor pelo mirabolante? Como mesmo iríamos urbanizar todas as favelas do Rio até 2020?)
Se a nova Câmara Metropolitana de Integração, a ser formalmente constituída em 2016, funcionar conforme os planos do governo estadual, pode ser que estejamos iniciando uma nova fase, sim. Vamos ver. O funcionamento depende de muitos fatores autónomos. Como organizar a atuação de 21 prefeituras, por exemplo? Como torná-la financeiramente sustentável e politicamente forte? Por outro lado, está claro que uma abordagem metropolitana é a única maneira de lidar com várias questões de nossa região, em especial com o tema do saneamento. A abordagem metropolitana é uma grande novidade, que não foi contemplada na Constituição de 1988.
O plano metropolitano para a baía, de acordo com Firmino, é construir galerias interceptoras coletando parte considerável das redes de drenagem, onde já correm praticamente 70% dos esgotos. São estas redes que hoje já afastam o esgoto dos seres humanos para então levá-lo embora com as águas pluviais. Desta forma, o esgoto seria levado às estações de tratamento existentes pela margem da baía, que atualmente operam abaixo de capacidade. Esse sistema já existe em muitas cidades. Ipanema e Copacabana possuem rede separativa, mas um grande cinturão intercepta qualquer excesso sob os calçadões das praias, sendo tudo levado (sem tratamento) para o emissário submarino.
“Imagina por exemplo fazer uma galeria bastante grande, debaixo da Linha Vermelha”, sugere Firmino. O lixo seria separado, continuamente, através do gradeamento e todo o esgoto que hoje cai na baía seria direcionado para a estação de tratamento Alegria.
De acordo com ele, com o devido investimento e obras de interceptação, durante apenas três anos, teríamos uma enorme diferença na baía.

O biólogo Mário Moscatelli, defensor da baía e das lagoas do Rio, não cansa de deunciar a falta de responsabilidade do poder público
Quem faria isso? Haveria licitações para concessões ao setor privado — PPPs — para a construção das galerias, a conexão delas às estações de tratamento e a operação dos sistemas, por trinta anos. Tais empresas, com a perspectiva da renda proveniente de tarifas, teriam como contratar empréstimos no setor privado. Seria necessária a participação governamental tambem, diz Firmino, para continuar avançando com as redes separativas.
A solução não é ideal. Na hora de chuvas fortes, o sistema seria sobrecarregado e teríamos despejo de esgoto no mar. Firmino acredita que os dias de chuva forte são relativamente poucos durante o ano, e assegura que o “tratamento de esgoto a tempo seco”, como é chamada essa solução, seria apenas um passo num caminho longo do saneamento na região metropolitana, levando até a separação total de esgoto e águas pluviais, com tratamento 100%.
Aos poucos, as prefeituras iriam contribuir com conexões ao sistema de interceptação.
A Cedae ficaria com o abastecimento de água na região, onde ela sempre atuou mais forte e para o qual contratou recentemente empréstimos da ordem de 3,2 bilhões de reais. Está claro que o esgoto está em segundo plano nos investimentos da empresa. O Rio todo — não apenas favelas — sofre do transbordo de esgoto e mau cheiro, resultados de falta de manutenção. Com a entrada do setor privado no esgoto, talvez tenhamos maior clareza de metas e prazos.
A médio prazo, diz Firmino, a Câmara irá focar na construção de redes separativas em áreas de moradias formais e informais com grande concentração de moradores, como os Complexos do Alemão e Maré.
A expectativa é de aprovar uma lei criando a ente metropolitano e estar com uma modelagem para o saneamento regional até o fim de 2015. Essa modelagem irá conter metas ano a ano para a limpeza da baía. Inclui também uma análise das propostas recém-anunciadas do estado, além do monitoramento e acompanhamento de tudo.
Desde 1991, a democracia brasileira amadureceu. Hoje, espera-se que haja uma boa dose de participação da sociedade civil em qualquer projeto para sanear a baía e seu entorno terrestre. “É fundamental um pacto pela baía, que reúna todos os interesses existentes no espelho d’água e em sua bacia hidrográfica: poder público (municipal, estadual e federal), empresariado (indústria, comércio, turismo, lazer), pescadores e sociedade civil,” comentou Souza na sua resposta por email. “Este pacto deve possibilitar a implantação de um modelo de governança da baía, e só então, teremos a possibilidade de estabelecer metas reais, com controle e monitoramento, das melhorias socioambientais. Enquanto isso não ocorrer toda a população que reside em seu redor estará ameaçada por interesses menores”.
Os Jogos Olímpicos já deixaram de ser o incentivo central para o saneamento; agora é a nossa saúde e o crescente custo do potencial não realizado da baía. Mesmo assim, há pressa. Nos próximos meses, veremos o desenrolar dos eventos, pois no primeiro trimestre de 2016, espera-se fazer a licitação de lotes dentro da área metropolitana, às quais as empresas do setor poderão concorrer.
Será que esses prazos são realistas? Dedos cruzados para os pés no chao.
A boa notícia é que, mesmo com a continuação do despejo de esgoto na baía durante esses anos todos, há mais clareza na abordagem das políticas públicas. “É a primeira vez que esteja claramente definido quem é o poder concedente na Região Metropolitana,” diz Firmino, que já participou da instituição um sistema de saneamento de tempo seco na Região dos Lagos. “As PPPs representam um investimento expressivo,” prossegue. “É a primeira vez que temos essa chance, a primeira vez que estamos pensando integrado”.