Uma prefeitura difícil, no Rio de Janeiro

 Vila Autódromo revela facetas de instituições e autoridades 

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Havia uma casa aqui. O que veremos neste local, em 2018?

Seria de pensar que a remoção de moradores no caminho dos Jogos Olímpicos fizesse parte de um plano público, de uma clara e convincente justificativa.

Afinal, cidades no mundo todo precisam remanejar moradias e pessoas, por diversos motivos que visam o bem maior.

No caso da Vila Autódromo, o prefeito Eduardo Paes disse, ao responder a perguntas do RioRealblog, durante uma sabatina no último dia 19 de janeiro, que no terreno, antes habitado por mais de 600 famílias, hoje abrigando uma pequena remanescente delas, haverá vias de acesso ao Parque Olímpico. Depois dos Jogos, acrescentou, ele quer reciclar uma quadra temporária de handebol para erguer, ali, uma escola.

Perguntado se, após os Jogos, serão construídos prédios no local, Paes disse que não. Adiantou que a Vila Autódromo não está na Parceria Público Privada do Parque Olímpico (negócio que inclui uma  pouca debatida dívida tributária  ao município de R$ 7,6 milhões, por parte da constsrutora Carvalho Hosken), que se trata de “lote público não edificável” — e que “os prédios vão ser só na área do Autódromo, onde já era”.

O território nunca fez parte dos lotes do Autódromo Nelson Piquet que, através dos anos, mudaram de mão algumas vezes e de forma confusa, entre município e estado. Faz parte sim, porém — ao contrário do que o prefeito disse — da Parceria Pública Privada. Isso está claro para quem examinar o acompanhamento da PPP do Tribunal de Contas Municipal:

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O blog não teve oportunidade de perguntar “onde já era” o quê, na fala do prefeito.

Vila Autódromo surgiu a partir dos anos 1970 por obra de pescadores e peões da construção do Autódromo Nelson Piquet. Centenas das família receberam, nos anos 1990, a concessão real de uso por 99 anos e mais 99 anos renováveis, do então governador Leonel Brizola. Desde 2005, parte da Vila constitui uma Área Especial de Interesse Social, que por definição pode abrigar apenas “moradia social”, o que quer dizer moradia acessível.

Notavelmente, houve várias tentativas, desde os anos 1990, de remover os moradores da Vila Autódromo. Brizola não era grande aliado do então prefeito César Maia, de quem o atual prefeito Paes era, na época, subprefeito para a a maior parte da Zona Oeste. Também é digno de nota o fato de que os valores imobiliários aumentaram durante as últimas décadas, recebendo um impulso grande com a localizacao dos Jogos nessa área pouco densa da cidade, oferecendo relativa segurança.

RioRealblog achou conveniente perguntar os planos da prefeitura para o local da Vila Autódromo porque a prefeitura nunca apresentou, publicamente, um projeto. Ela disse ao Tribunal de Contas Municipal que haveria, futuramente, um estacionamento e uma área de proteção ambiental.

Nos últimos anos houve também menção, em conexão com a remoção da Vila Autódromo, da ampliação das avenidas Embaixador Abelardo Bueno e Salvador Allende; da construção do Centro de Mídia; do perímetro de segurança do Parque Olímpico; de uma “Faixa Marginal de Proteção”; e de uma alça viária entre dois grandes eixos viários em construção (aparentemente, a Transolímpica e a Transcarioca).

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O prefeito responde a perguntas no OsteRio de janeiro de 2016, em Ipanema

O único projeto –de urbanização –foi elaborado por especialistas da UFF e da UFRJ, em conjunto com moradores, e ganhou um prêmio, o Deutsche Bank Urban Age Award, de US$ 80 mil. Realizar esse projeto teria custado menos aos nossos bolsos, do que aquilo que está sendo feito (remoção, pagamento de desapropriação, construção de apartamentos Minha Casa Minha Vida num terreno adquirido para esse fim), de acordo com uma comparação feito por críticos da prefeitura. Em outubro de 2013, a cerimonia de entrega do prêmio, que faria parte de um coquetel no Palácio da Cidade, com a presença do prefeito, foi repentinamente cancelada.

Em vez de urbanização, remoção: centenas de famílias, nos últimos três anos, deixaram a Vila Autódromo. Ou aceitaram um apartamento nas proximidades ou chegaram a um acordo financeiro com a prefeitura.

Em janeiro, durante a sabatina, o prefeito disse que as trinta famílias que ainda moram no local estão livres para ficar.

A Vila Autódromo fica longe de Ipanema; poucos do público presente no OsteRio terão oportunidade de ver com os próprios olhos o que acontece por lá. Felizmente, os jornais O Globo e Extra publicaram uma reportagem na semana passada (estranhamente localizada nas seções de esportes). Existem também jornais paulistassites independentes e a mídia social:

 

A experiência das famílias que ainda moram no local não tem sido confortável. A prefeitura costuma requerer que o morador saia logo (às vezes, horas) após receber a indenização. Destrói, então, o imóvel desocupado. Isso tem levado a danos em casas vizinhas. Os moradores dizem que a prefeitura e concessões interrompem a luz e a coleta de esgoto. Reclamam de cerceamento, de truculência de guardas municipais, e de limites no direito de ir e vir. Dizem receber ameaças de morte e que, entre os guardas municipais, aparecem milicianos.

Eles temem que a prefeitura faça demolições durante o Carnaval, quando a atenção da maioria dos cidadãos está na folia.

Uma recente decisão judiciária obrigou a prefeitura a remover entulhos sem demora e cuidar das perigosas poças d’água. Impôs multa.

O sofrimento dos cidadãos nem sempre é — nem devia ser — fator determinante nas políticas públicas determinadas por quem nos governa. Cabe ao governante pesar os benefícios e as desvantagens de suas decisões. No caso da Vila Autódromo, não está claro quem exatamente se beneficia da remoção dos moradores, enquanto as desvantagens seguramente incidem neles.

Ainda bem que existam, portanto, instituições incumbidas de contribuir para o equilíbrio do exercício do poder. Até 2013, a Subprocuradoria de Justiça, Direitos Humanos e Terceiro Setor do Ministério Público estadual fiscalizava a atuação da prefeitura, principalmente na pessoa do subprocurador Leonardo Chaves. Naquele ano, ele foi transferido do cargo. Mesmo assim, em 2014 Chaves fez um parecer a favor do direito pleno dos moradores de ficarem em suas casas.

Hoje, Chaves disse ao RioRealblog, “a Subprocuradoria [de Justiça, Direitos Humanos e Terceiro Setor] existe no nome apenas”.

Na Defensoria Pública do estado, o Núcleo de Terras e Habitação passou por uma estranha briga interna no mesmo ano. Enquanto as defensoras haviam proposto uma ação civil pública para declarar a nulidade da licença de demolição das moradias, o coordenador do Núcleo afirmava a demolição ser “condição essencial para a mudança de habitação, seja por vontade expressa dos titulares, seja por ser indispensável para evitar a ocupação ilegal por terceiros e, em consequência, futuros problemas para a Municipalidade”.

Apesar da ameaça à autonomia constitucional delas, as defensoras ficaram nos seus cargos e hoje continuam a representar os moradores que querem ficar na Vila Autódromo.

Em comparação com outros estados brasileiros, o Rio de Janeiro conta com instituições fortes para defender os direitos dos cidadãos. Tanto o Ministério Público como a Defensoria Pública costumam acionar o judiciário sobre uma gama enorme de questões. Não raro, o judiciário toma decisões contrárias às vontades do legislativo ou do executivo do estado.

Ainda há um problema, de acordo com José Augusto Garcia, professor de direito na UERJ e diretor-geral do Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública estadual. “Concretizar uma decisão pode ser mais difícil do que obtê-la”, disse ao RioRealblog, dando como exemplo a decisão recente de banir a revista vexatória das visitantes às penitenciárias fluminenses. “A força do judiciário para cumprir suas próprias decisões às vezes é débil”.

Não diferente de muitas questões fundiárias no Brasil, o histórico legal da Vila Autódromo é um confuso emaranhado de decisões e documentos. Levou mais de uma hora para que a defensora pública Adriana Bevilaqua conseguisse contá-lo ao RioRealblog, semana passada.

Juridicamente, diz ela, o prefeito não pode expropriar, por decreto (como fez em março de 2015) casas que ficam na parte de Vila Autódromo denominada Área Especial de Interesse Social”, que inclui a associação de moradores e a casa da líder comunitária, dona Penha. Seria necessária uma nova lei, de acordo com Bevilaqua.

O fim da história, ainda na justiça, está por vir.

Enquanto isso, segue a vida real e as empreiteiras Carvalho Hosken, Andrade Gutierrez e Odebrecht cumprem a parte delas (com algumas resssalvas do Tribunal de Contas Municipal) na Parceria Pública-Privada do Parque Olímpico.

“Como é que você vai botar o pobre ali?” perguntou, em meados do ano passado, o dono da Carvalho Hosken, Carlos Carvalho, ao jornalista da BBC, Jefferson Puff, fazendo referência aos empreendimentos imobiliários pós-Jogos da empresa no Parque Olímpico. “Ele tem que morar perto porque presta serviço e ganha dinheiro com quem pode, mas você só deve botar ali quem pode, senão você estraga tudo, joga o dinheiro fora”.

No plano da Carvalho Hosken para a Vila Autódromo, de acordo com a reportagem, haverá uma área verde, em frente a “condomínios de alto padrão”.

Somente daqui a alguns anos saberemos o que, na verdade, ficará no lugar da Vila Autódromo. Uma coisa é certa, porém: se todos os moradores saírem, como quer a prefeitura, a história do local será mais uma da saga imobiliária da metrópole, na qual é tristemente desigual o tratamento das diferentes camadas da sociedade.

*  *  *  *  *

Leia aqui reportagem da Rioonwatch sobre a intimidação dos moradores.

Leia aqui o parecer de 2013, de um grupo de trabalho de engenheiros, arquitetos, e professores, sobre a Vila Autódromo.

Leia aqui matéria do jornal inglês The Guardian, de 2015.

 

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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1 Response to Uma prefeitura difícil, no Rio de Janeiro

  1. quem sabe agora com eleição, as coisas mudam?

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