Pandemônio de mobilidade no Rio de Janeiro

Quem está de brincadeira com o passageiro? Grafite no Terminal de BRT Alvorada, Barra da Tijuca

Prisões hoje escancaram esquema corrupto, lesivo ao passageiro, que dura quase 30 anos

Alguns dizem que se trata da pior crise do transporte público no Rio metropolitano, com perspectiva de caos. Essa matéria de O Globo, publicada no domingo, descreve um quadro de queda no número de passageiros, atrasos salariais, demissões, duas decisões judiciais para que a tarifa seja reduzida, aumento de transporte informal com alegada participação de milicianos, retirada de ônibus velhos de circulação e a ameaça, por parte das empresas, de fechar 22 estações de BRT na linha Transoeste.

O dono de algumas das empresas de ônibus mais importantes e tradicionais do Rio, da família Barata, foi preso nesta terça-feira pela terceira vez, acusado de pagar propina a políticos estaduais. Faria parte de uma rede grande de empresários e políticos que focaram nos seus bolsos, deixando de lado o bem maior.

Ontem, motoristas de ônibus votaram a favor de uma paralisação por cinco horas no dia 21, pressionando pelo pagamento de salários atrasados, entre outras demandas.

Por incrível que pareça, a mobilidade era para ter sido o legado mais importante dos Jogos de 2016. Houve investimentos, nos anos preparativos dos mega-eventos, de pelo menos US$ 4,5 bilhões na modernização parcial do sistema de trens da SuperVia, a construção de três linhas de BRT, um sistema de VLT e a extensão de uma linha do Metrô.

O que aconteceu? Por onde foi o erro?

Vale a pena aqui lembrar que as manifestações de rua de 2013 surgiram por causa de um aumento na tarifa de ônibus, de vinte centavos. Veio também a demanda por transparência nas contas e nas relações prefeitura-consórcios de ônibus (reorganizados nesse formato em 2011, pela administração Paes; antes, cada empresa era “permissionária”).

É útil pensar o caos no setor à luz de vários desmoronamentos de sistemas tradicionais que vemos, atualmente, no mundo todo. Hipótese: a raiz está, por um lado, na crescente dificuldade em manter segredos e, por outro, na crescente facilidade em criar redes e compartilhar realidades. Pressentíamos isso, nas ruas, em 2013.

No caso das empresas de ônibus, parece agora que o modelo tradicional era:

  • Tarifas pagavam custos e lucros
  • Empresários não compartilhavam custos e ganhos reais
  • Empresários custeavam campanhas e pagavam propinas a políticos e conselheiros do Tribunal de Contas do estado
  • Políticos fortes concediam vantagens fiscais e protegiam empresas de outros políticos, da imprensa e de concorrentes como vans
  • Empresários aumentavam as tarifas uma vez por ano, supostamente para acompanhar a inflação

O que temos agora, aparentemente, é:

  • Tarifas não pagam custos e lucros
  • Custos e ganhos reais são mais expostos ao olho público
  • O prefeito não (e nem a justiça) protege aos empresários
  • A Polícia Federal e o Ministério Público agem, políticos criminosos delatam
  • Tarifas são reduzidas

O prefeito Eduardo Paes conseguiu, em 2013, bloquear a CPI dos ônibus, instituída pela Câmara Municipal. Mandou fazer, porém, um estudo das contas das empresas. No meio tempo, elas mesmas se informatizavam cada vez mais (ao demitir cobradores e encorajar o uso do RioCard), o que deixou seus dados menos herméticos. No fim do mandato, Paes não pagou a última parcela do custo da consultoria, feita pela PricewaterhouseCoopers– e o estudo final ficou retido. Um repórter persistente foi atrás e assim, revelaram-se muitas verdades (que ajudaram na construção do modelo, acima), numa importante série de reportagens publicadas no site da Agência Pública.

É difícil saber quanto dessa história teria contribuído para que o atual prefeito, Marcelo Crivella, barrasse o tradicional aumento anual da tarifa de ônibus. Tivemos até uma redução na tarifa, de dez centavos, por ordem judicial, com a perspectiva de mais uma redução ainda nessa semana. Impossível, nos anos Paes. Crivella também afrouxou a fiscalização das vans, que na Zona Oeste competem com ônibus e BRT. Supostamente, existe ligação entre milicianos e vans, nessa parte do Rio — o que teria futuros reflexos políticos, de acordo com alguns observadores.

Nesse cenário, nunca se fala do paradigma financeiro do sistema de ônibus (ou de outros meios de tranporte, enfim). Quem paga? Muitas cidades entram com subsídios públicos, de forma transparente e eficaz. É de grande relevância a reflexão na coluna do urbanista e arquiteto Washington Fajardo, sábado passado: “Circular pela cidade é negócio ou direito?” Uma cidade não é vibrante quando os cidadãos ficam restritos a bolhas. Cidade é lugar oxigenado por trocas– de experiências e ideias, de bens e serviços.

A questão de quem paga deve ser feita para todos os meios de transporte– e todos devem ser pensados, de acordo com especialistas, no âmbito metropolitano. Isso jamais aconteceu, até a recente elaboração do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana. Um “sistema” de colcha de retalhos, calcado em relações favoráveis entre empresários e políticos, acaba sendo vulnerável em épocas de crise econômica e política, como a atual. Vemos quedas importantes nos números de passageiros e na capacidade do estado sustentar o Bilhete Único.

Dois milhões de pessoas transitam entre a cidades metropolitanas e a capital todo dia. A falta de opção contribui para o caos.

A cidade vizinha de São João do Meriti, de umas 460 mil almas, tem uma das taxas mais altas, na área metropolitana, de população economicamente ativa que trabalha na capital: 40%, de acordo com a Casa Fluminense, tomando como base dados de 2010, do IBGE.

São João do Meriti teve uma explosão de rodas: o número de carros foi de 44 mil em 2005 para 93 mil em 2015, mais que o dobro; o de motos mais do que triplicou, de 3,8 mil em 2005 para 16,6 mil, um salto de 337%.

Enquanto a Lava Jato mexeu com o setor de ônibus, com a Operação Ponto Final, em julho passado, as investigações também tem impacto em nossos trens, o VLT, o Metrô e até nas barcas. Isso é porque todos esses meios são concessões operadas, inteiro ou parcialmente, por empreiteiras, fundos de pensão e empresas de ônibus envolvidas em escândalos.

No caso do VLT, por exemplo, a OAS estaria vendendo sua participação na sociedade da concessionária, para um fundo de Abu Dhabi, a Mubadala, junto com o grupo francês, Vinci, com experiência global em mobilidade. A capacidade de investimento dos outros sócios, presumivelmente, também ficou comprometida pela corrupção e má gestão financeira, pois incluem os fundos de pensão Previ, Petros e Funcef, respectivamente do Banco do Brasil, Petrobras e Caixa Econômica. As empreiteiras Camargo Correa, Andrade Gutierrez e Odebrecht (sócia majoritária na concessionária de trens metropolitanos SuperVia, em conjunto com a japonesa Mitsui) e empresários de ônibus também participam.

Como não cansam de apontar Vitor Mihessen, coordenador de informação da Casa Fluminense e Clarisse Linke, diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, a mobilidade precisa ser pensada em conjunto com políticas públicas de moradia, emprego e diminuição de desigualdade — o que não aconteceu durante os anos Paes. Por incentivo errado do governo federal, a maior parte dos apartamentos Minha Casa Minha Vida foi construída longe de empregos e de outros destinos dos cidadãos. As grandes distâncias prejudicam a viabilidade financeira de vários meios de transporte no Rio metropolitano, na ausência de eficazes subsídios governamentais para diminuir os custos do espraiamento.

A falta de transparência e de responsabilidade para com sociedade fez com que reformas tenham sido conduzidas com pouco debate ou diálogo. A racionalização dos ônibus muncipais da capital, implementada com pressa, antes dos Jogos, não teve embasamento em estudos sólidos entre usuários — que ficaram perdidos na própria cidade.

No contexto de um passado opaco de elaboração de políticas de mobilidade no Rio metropolitano, é difícil saber como e por que se decidiu criar quatro BRTs e estender o Metrô para a Barra. Quanto se pensou no passageiro e quanto se pensou no negócio (formal ou informal)?

Rafael Pereira, doutorando na universidade de Oxford e pesquisador do IPEA

E em quais passageiros, se algum, se pensou? Eis a pergunta de um estudo divulgado no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, semana passada. Rafael Pereira estudou os ganhos em acessibilidade a empregos e escolas, advindos dos investimentos em mobilidade, feitos na capital entre 2014 e 2017.  De acordo com ele, esses ganhos favoreceram as classes mais altas do Rio, em vez de diminuir a desigualdade. Tal impacto, ele concluiu, teria sido menos forte se não sofréssemos a crise econômica.

Pela falta de dados de viagens de usuários pré-2014, Rafael não pôde fazer uma avaliação plena de impacto de tudo que aconteceu com a mobilidade no Rio, nos anos Cabral-Paes. A primeira linha BRT, a Transoeste — que conecta alguns dos bairros mais pobres do Rio a áreas mais favorecidas — foi inaugurada em 2012.  Uma quarta linha BRT, a Transbrasil, não está pronta; se for terminada, deve fazer uma diferença positiva, ao servir bairros mais pobres, reforçando uma malha metropolitana que conecta a Zona Norte ao centro.

Mais do que nunca, no quadro atual, vemos que BRT é, no melhor linguajar carioca, gambiarra. Bem mais em conta e rápida para construir do que metrô, tem potencial de chegar a ser um meio de transporte de alta capacidade, diferente de ônibus tradicional. Só que os nossos BRTs estão cheios de problemas, como lembrou o colunista do Globo e agitador Marcus Faustini, escrevendo sobre a Transoeste, hoje:

A chegada do BRT na Zona Oeste não resolveu todos os problemas históricos de mobilidade, mas criou um impacto na diminuição da duração da viagem. Menos tempo gasto no transporte cria condições para o investimento em projetos de vida e afetos. As estações impulsionaram pequenos negócios no entorno, aumentando renda. O BRT, com erros e acertos, é o primeiro modelo de organização do transporte público que chega na região, antes, inteiramente à mercê da lógica de rentabilidade das empresas, apenas. Quando uma região não está envolvida nas ações estratégicas de uma cidade, as chances do fosso da desigualdade aumentar e de domínio de poder paralelo se tornam maiores.

Hugo Costa, geógrafo, morador e defensor da Zona Norte, se queixa da falta de atenção ao impacto ambiental da BRT na região dele, a Transcarioca. Diz que a construção tirou áreas verdes e aumentou a poluição do ar, prejudicando crianças.

Transporte público no Rio metropolitano, como lidar? O Plano Estratégico para a metrópole está repleto de recomendações bem pensadas. O caminho de hoje até a implementação de tantas boas ideias está, porém, cheio de percalços, como vimos na litania de problemas no começo deste post. Até as cidades mais desenvolvidas lutam com graves dificuldades nos seus sistemas de transporte público.

Poucos confiam num desfecho justo — aos olhos da sociedade– das prisões de hoje, que miram o coração do esquema de corrupção nos transportes intermunicipais (e também, de reflexo, provavelmente da mobilidade municipal). Face às dúvidas, é bom lembrar que os empresários da mobilidade tem cada vez menos chance de esconder seus dados. E nós temos cada vez mais chance de criar redes e compartilhar realidades. Sua blogueira aposta que ninguém das famílias Barata ou Picciani está no grupo de Facebook Mobilidade Urbana Shitposting ou segue a conta no Twitter @TrensUrbanosRJ.

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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7 Responses to Pandemônio de mobilidade no Rio de Janeiro

  1. Paulo Neuhaus says:

    Transporte coletivo na maioria dos paises mais desenvolvidos eh habitualmente oferecido pelo setor publico, ate mesmo na meca do capitalismo Trumpiano. Nos anos 60, o Governador Carlos Lacerda criou a Companhia de Transportes Coletivos (CTC) no Rio, que teve pontos positivos mas acabou sendo fechada (quem sabe por pressao das companhias particulares). Entretanto, dada a total falencia dos governos estadual e municipal do RJ, e a grosseira corrupcao constatada nas empresas publicas nas ultimas decadas, nao vejo clima para uma empresa publica de transportes no Rio de Janeiro (fora o metro).

    • Rio real says:

      A questão é governança, acima de tudo. Empresas privadas também são corruptas. Aqui a estrutura do Tribunal de Contas inviabilizou-o– até o surgimento da Lava Jato.

    • Visi says:

      O problema não é ser público ou privado, o Rio de Janeiro mostra que é possível ter os aspectos negativos dos dois.
      Empresas como Flumitrens, a administração dos trens urbanos pela CBTU, a atual RioTrilhos, foram todas administrações públicas super ineficientes e precárias, o período que deu fama ruim aos trens do Rio, com surfistas e hiper lotação, e os identificou no consciente coletivo como “transporte de pobre”.
      Por outro lado empresas privadas como Metrô Rio, Supervia, consórcios de ônibus, CCR Barcas, mostra que aqui é uma bagunça sem fiscalização, sem integração, sem compromisso de qualidade com o passageiro.
      Ou seja, o buraco é estrutural e mais embaixo. Não é necessário que uma empresa seja pública para que ela recebe subsídios e existem formas de financiamento alternativas praticadas no mundo todo além de subsídios, tal qual pedágio urbano, incidente sobre salários, sobre gasolina, taxas imobiliárias para shoppings e outros estabalecimentos cobertos pela malha de trem/metrô, licensas, etc.

  2. JC Lester says:

    Vou para Rio de Janeiro agora pra visitar com a familia. Espero que tenha como me locover na cidade! Americano frustrado com voces.

  3. Visi says:

    Achei seu texto genial. Eu também acompanho os planos e discussões da câmara metropolitana a um tempo e tudo que você falou é muito certo.
    Por trás de todas essas discussões e conflitos atuais, não só no Rio, mas no Brasil, existe o problema do financiamento do transporte público. A crux de todos os protestos de 2013- que logo logo parecem que vão se repetir- nascem dessa falta de políticas alternativas em relação a urbanização e planejamento das cidades brasileiras. Existe uma insolvência e falta de integração inerente a todos os sistemas de transporte, até os mais eficientes como em Curitiba e São Paulo, e as coisas estão entrando em colapso.
    No Rio de Janeiro isso parece mais crítico porque é a rede aquaviária e de trens urbanos mais extensa de todas as cidades, porém sem qualquer integração.
    Fico feliz que exista uma voz esclarecida como você em tantos artigos mal informados da globo, extra e o dia que só repetem slogans bobos.

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