Uma chacoalhada em mentes, almas e favelas

Terceira de uma série de pepitas conversacionais, sobre a transformação da vida cultural na cidade maravilhosa. Neste caso, uma pepita um pouco maior…

A cidade toda pode sentir o impacto, se a Agência Redes Para a Juventude der certo

Durante a apresentação descrita neste post, lá atrás (há menos de um ano, mas já aconteceu tanta coisa!), RioRealblog perguntou ao então coordenador estadual da UPP Social, Ricardo Henriques, sobre os jovens desocupados das favelas onde as UPPs estavam chegando. Os soldados do tráfico de drogas, com a inibição dos negócios, poderiam ficar sem ter o que fazer. Haveria programas de capacitação?

Henriques virou de cabeça para baixo a pressuposição da pergunta. Muitos dos jovens que estão no tráfico são empreendedores, ele explicou. Possuem iniciativa.

Marcus Faustini, idealizador da Agência

Reembaralhamento

“Tive a ideia da bolsa porque muito jovem desiste no meio do caminho. Não tem incentivo, abandona o sonho porque tem que trabalhar,” diz Marcus Faustini. Polivalente cultural, Faustini é o idealizador da Agência, que no momento atua em seis favelas UPP, trabalhando em fase piloto com 300 jovens (selecionados entre 900 candidatos), graças à Petrobras dotada de um generoso orçamento de R$2 milhões.

Metade disso vai diretamente para os participantes. Os jovens ganham uma bolsa mensal de R$100. Os monitores ganham R$1.200 mensais, e cada membro de uma equipe de 50 universitários recebe R$ 600 por mês para trabalhar em grupos de estudo durante a semana, entre as maratonas de sábado que são o nexo do programa. Ao fim do programa, cada candidato apresenta sua ideia completa diante de uma banca, que inclui gestores públicos e representantes de instituições de fins sociais como a Fundação Itaú Social, O Instituto, C & A, SESC, e ONGs locais.

Em cada comunidade, cinco ideias são selecionadas para que sejam realizadas, com o auxílio de um prêmio de R$10 mil. A Agência ajuda os jovens a administrar os fundos. Depois da banca, vem uma fase de “desencubadora” ou incubadora, dependendo da situação do projeto, inclusive os que não foram selecionados.

Esquentando para o ensaio das apresentações à banca

Quem participa precisa morar em uma das comunidades atendidas pela Agência, ter entre 14 e 29 anos, e dispor de uma ideia. Pode-se mudar de ideia até quatro vezes; pode também formar um grupo em volta à uma única ideia. Também, 30 “doutores”, professores da UFRJ, dão consultoria.

O que a Agência negocia e intermedia é o processo do jovem virar “um operador do mundo”, diz Faustini. Os quatro meses do programa servem para envolver o participante em uma espécie de videogame ao vivo, pelo qual ele começa a se entender no mundo, elaborando e ganhando referências culturais que ajudam a fundamentar sua ideia inicial, desenvolvê-la,  e possivelmente, realizá-la.

A palavra empreendedorismo poderia ser utilizada aqui, mas é pouco para descrever do que se trata.

Vascaíno de 14 anos quer reciclar garrafas PET

CDD na tela

Revolução pacífica?

“A integração [da cidade] sempre existiu, ” explica Faustini. “Essa cidade nunca foi partida. Os pobres sempre foram incluidos na cidade, no papel de subalterno. Eu acho que tem que mudar tudo.”

Ele fala de reembaralhamento dos players urbanos. E, numa manhã recente na Cidade de  Deus, durante os ensaios dos jovens para suas apresentações finais, vislumbra-se alguns áses em potencial.

Um grupo de seis propõe uma TV comunitária online. Fariam um festival de cinema, cobertura de festas e eventos; seria financeiramente sustentável.

“Qual o equipamento?” pergunta um membro da banca de ensaio, Écio Salles, Coordenador de Cultura e Educação na Secretaria de Cultura estadual.” Quem sabe filmar? Quem vai criar o site?”

Faustini também está na banca. Sugere focar mais. “Vocês estão prometendo muito,” comenta, recomendando também que façam transmissões ao vivo de eventos comunitários. “Não precisa sempre editar.”

Normalmente seria muito detalhe para um post do RioRealblog, mas a metodologia pedagógica é tão audaciosa que merece destaque. Ela se inspira na vivência do Faustini, que cresceu num conjunto habitacional em Santa Cruz, leu sem parar quando acometido por uma tuberculose, zanzava pela cidade na adolescência, curtiu  uma variedade de empregos e transportes urbanos, além da música funk, a cultura punk e a teologia da libertação– e se formou em teatro.

“Isso foi excepcional,” diz ele. “Mas não pode ser exceção, tem que ser regra.”

Para tanto, o jovem selecionado para participar da Agência passa por etapas:

  • Inventário. Aprende os vários significados e utilizações, e cada jovem constrói um. Quais são as ferramentas disponíveis?
  • Mapa. Pesquisa todo tipo de mapa e mapeia seu território.
  • Gabinete de curiosidades. Aprende sobre o hábito dos exploradores antigos colecionarem objetos e raridades, e faz o mesmo.
  • Abecedário. Pensa o projeto inicial de maneira alfabética, para começar a criar uma defesa discursiva.
  • Bestiário. Reflexões sobre monstros– soluções fora dos padrões normais, como as mototáxis nas favelas. Um participante imaginou um “sex-shop militante da diversidade sexual”.

A cada encontro, os jovens assumem um papel, ou avatar, diferente: desbravador, feliz, colaborador, questionador, realizador. Cada um deve criar e alimentar um blog; com essa e outras tarefas participativas ganha-se pontos que podem ser usados para “comprar” a ajuda de padrinhos mágicos, adultos especialistas que ajudam na elaboração do projeto. Os jovens também apresentam seus projetos aos pais e a outros membros de suas comunidades.

Tudo isso teria sido possível alguns anos atrás, antes da pacificação e o reconhecimento das favelas como parte legítima da cidade–merecedora de atenção do poder público?

A UPP abre portas–  para trocas, para a criação de redes, e para viagens, virtuais e reais. “Traz a possibilidade de colocarmos o debate sobre o jovem de origem popular como protagonista,” diz Faustini. “O problema é que ela está restrita a uma região da cidade e também serve como controle dos pobres. A UPP é um espaço em disputa.”

Esse visionário tem tanta fé na favela que diz que no futuro, todo mundo vai querer estar nela, que ela precisa se tornar protagonista urbana. Resta saber de que momento de favela ele está falando– pois o esgoto ao ar livre, o lixo e ratos, o barulho e vielas íngremes da favela contemporânea não atraem todo mundo. Contudo, já que por volta de um milhão de cariocas mora atualmente em comunidades carentes, ou seja 17% da população da cidade propriamente dita, existe uma enorme possibilidade de se encontrar uma boa dose de protagonismo e criatividade entre seus membros.

Como bem dizia Ricardo Henriques, hoje presidente do Instituto Pereira Passos, responsável pela UPP Social agora a nivel municipal.

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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5 Responses to Uma chacoalhada em mentes, almas e favelas

  1. Kate Lyra says:

    Great work, Julia! Important to know about follow-up. Best, Kate

  2. Zaida Knight says:

    Fantastico! E que perdure! Informação: eh importante saber-se o que esta acontecendo. Parabens, Julia, por tudo o que tem feito.

  3. tite de lamare rego barros says:

    Julia, esta matéria está muito, muito boa. Por meu tipo de trabalho e experiência vejo esta iniciativa como uma coisa única e muito boa.

  4. Rio real says:

    Agradeço muito, Zaida e Tite. E agora, traduzir para o inglês!

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