Novas coordenadas
De repente, você surpreende duas senhoras paradas na frente do Theatro Municipal com o presente de seus dois ingressos para um concerto de música clássica, e vai voando para assistir a uma peça de Shakespeare no Complexo do Alemão…
Logo você se encontra pendurada numa espaçosa gôndola, diante de uma vista deslumbrante. O Complexo é tão grande que comporta nada menos do que seis estações. Tão grande, e um ano atrás, você nem sabia direito onde ele ficava. Cerca de 100 mil pessoas moram aqui, talvez o dobro de sua Ipanema! A ocupação pelo Exército em novembro de 2010 mudou sua mapa mental da cidade. Antes disso, falava-se em teleférico, mas era tudo muito estranho. O governo federal o construía no meio de um território ainda dominado pelo tráfico. Dominado há trinta anos…
Na volta ao estação do Morro do Adeus, você esbarra com uma tropa de vinte jovens brincando com toda a seriedade, criando uma intervenção teatral que aprenderam com um francês. O brincalhão Mozart, a quem você deixou para trás no centro da cidade, teria adorado.
Aí você assiste– sentindo o maior frio, pois o Morro do Adeus se encontra de veras num morro, com direito a vento polar– à peça Sua Incelença, Ricardo III, encenada por uma trupe do Rio Grande do Norte. Eles acabaram de oferecer uma oficina para atores, diretores, músicos e estudantes de teatro, moradores do Alemão. Ao seu lado estão sentados jovens membros de um grupo de teatro local, vestidos de camiseta e jeans. Tremem igual a você.
Por final, uma bailarina gaúcha anda com confiança, apesar de usar uma venda nos olhos. Ela até escala o arame cercando um campo de futebol, acompanhada (musicalmente) por um compositor local. Você se identifica. Mas ela conhece o território como a palma da mão, pois aqui fez uma residência de duas semanas.
Enfrentei um medo e um preconceito pessoal formados por informações generalizadoras sobre o pessoal que vive no morro. Levo imagens lindas na memória, conheci pessoas e artista fabulosos, gente que tem um poder muito grande de transformação da precariedade da realidade em potencial criativo. — Roberta Savian
Sinal dos tempos…
Mas…
“Receber turistas é muito chato,” diz Itamar Silva, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, IBASE. “Ficam avisando que a gente tem que se preparar para o turismo,” ele conta. “O que querem dizer? Limpeza? Oferecer água Perrier?”
Surgem albergues em algumas favelas que têm UPP. E a classe média sobe para comer uma feijoada com um quê de autenticidade, bem mais barata do que no asfalto.
Morador da favela Santa Marta, Silva logo enumera as novidades culturais (leia-se festas com roda de samba) pós-UPP: Morro de Alegria, Favela Chique, Por do Santa.
Botafogo, bairro por onde balas perdidas choviam nos jardins do Palácio da Cidade (sede do prefeito), virou porta de entrada ao morro. Mais uma mudança no mapa.
Filho de doméstica empregada e compositor de samba, Silva ainda reclama que quem agora chega no morro para curtir um samba de raíz acaba por marginalizar o samba que os moradores mais ouvem, o pagode. E a pacificação em si tende a barrar o funk, sobretudo quando as letras glorificam o tráfico de drogas. Silva prevê que a escola de samba vai perder seu lugar. Só falta, ele acrescenta, criar a ‘ala da comunidade’.
Pois é, a pacificação e suas ramificações mexem, como os Padox, com gente, barreiras, e territórios. Silva sugere uma espécie de reserva de mercado em favelas, para “proteger algumas áreas, para pensar a integração”. APAC? E o morador que quer aproveitar a valorização de seu imóvel?
Difícil é saber agora o que preservar, quem fica, quem entra e quem vai embora logo que puder. Através das décadas, a política pública para as favelas cariocas evoluiu de remoção nos anos 1970, para a urbanização nos anos 1990, e, a partir de 2008, para a integração urbana. Até 202o, o programa Morar Carioca pretende igualar as condições de moradia e de qualidade de vida em geral entre todas as favelas da cidade e todos os seus bairros. Os desenhos dos arquitetos são lindos, repletos de verde e de ambientes limpos.
Em 2020, daqui a 9 anos, quem será o morador de favela? Quantos serão pobres, e onde irão morar? E em 2030? Não existe debate em torno disso.
A realidade atiça nossas imaginações. Do mesmo jeito que não se cogitava fazer um programa cultural no Complexo do Alemão, nem se pensava que o Brasil poderia se tornar um país de classe média preponderante.
Nunca foi para favela existir– por isso mesmo elas foram ignoradas por tantos anos. Foco de atenção e investimento agora, elas perigam se tornar meros distritos urbanos de uma certa singularidade. Há mal nisso?
Enquanto o futuro não toma vulto, gasta-se muito dinheiro, da parte de empresas tais como a Petrobras e a Oi, e dos governos municipal e estadual, para que cariocas de diferentes partes da cidade compartilhem experiências e façam novas parcerias. Em agosto, o estado do Rio anunciou um investimento inédito em cultura para este ano e 2012, de quase R$ 41 milhões. Disso, R$ 500 mil irão para a produção de videoclipes, CDs e projetos de memória, comunicação e circulação da polêmica música funk.
É uma contrapartida positiva para a mobilidade urbana que acabamos de ganhar– que só pode fortalecer a paz e a democracia.
Julia,
Como tive um preview naquele papo, achei o resultado muito, muito bom. Parabéns!
obrigada, Tite!
Adorei!
Julia, parabens pelo blog! Concordo contigo, acho que agora em época de Rio 20 é hora de pensarmos o que queremos Rio 30! 🙂 bjs
Obrigada, Ana!
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