E no palco principal, a favela!

Será que alguém já tentou contabilizar quantas pessoas até agora viveram a vida inteira numa favela brasileira? Desde a primeira favela, aqui no Rio, no Morro da Favela, ocupado em 1897? Seguramente seriam mais de seis milhões.

Não que viver numa situação de ameaça constante à saúde, à integridade física, ao equilíbrio mental, etc. seja comparável ao Holocausto. Mas são sim gerações de pessoas que viveram em guetos. Estiveram longamente à margem, limitados na realização do potencial humano delas.

Hoje, um em cada cinco cariocas mora numa favela.

Assim é que se coleta lixo na Favela da Mineira

Por isso, nesta semana tivemos duas grandes notícias . Primeiro, o governador Sérgio Cabral anunciou gastos de US$ 100 milhões (US$ 70 milhões dos quais num empréstimo do BID) para atender quarenta mil jovens em favelas pacificadas até 2016.

De acordo com o jornal O Globo, “As ações incluem atendimento psicológico, orientação profissional e ajuda para que os jovens retomem os estudos[…] A ideia é criar espaços da juventude para abrigar núcleos de acompanhamento para moradores entre 15 e 19 anos de idade.”

Depois, o prefeito Eduardo Paes apresentou um novo Plano Estratégico de metas para até o mesmo ano. O plano atinge o morador de favela por vários eixos:

  • reduz o tempo de espera para atendimento médico público, e a mortalidade infantil
  • criará mais vagas para educação infantil pública,  aumenta o tempo que o aluno passa na escola, e reduz o analfabetismo
  • reduz em 5% a área ocupada por favelas, com 2008 como ano base
  • melhora o transporte público; e constrói 100 mil novas unidades habitacionais
  • leva água, esgoto e drenagem, entre outros serviços, a 156 mil domicílios e tira por volta de 25 mil famílias de áreas de risco
  • melhora a coleta de esgoto na Zona Oeste e aumenta a reciclagem de lixo em toda a cidade
  • aumenta a cobertura de atenção às crianças usuárias de crack
  • reduzirá a pobreza, através de programas complementares ao de Bolsa Família

Quanto vai mudar o dia a dia delas?

Desconfiança

Muita gente vai dizer que toda essa atenção é por causa das Olimpíadas. E daí, se realmente acontecer?

O que está por trás dessa afirmação é uma desconfiança que surge justamente de mais de um século de exclusão: se é o olhar de fora que leva os cariocas de não-favela a, finalmente, atender às necessidades dos cariocas de favela, quanto que se pode confiar na qualidade da atenção?

Cultura

Quem mora em favela tende a se juntar na porta, nas escadarias, nos cantos. Conhece os vizinhos e conta com a solidariedade deles. Frequenta eventos comunitários e faz festa na rua.

“O uso do espaço público constrói uma certa subjetividade específica que de certo modo também constrói uma cultura especifica,” diz o experiente arquiteto e urbanista Sérgio Magalhães, que  no ano passado conduziu o concurso de urbanização de favelas Morar Carioca. “O vínculo entre as pessoas é diferente.”

Ele faz uma comparação útil. “Na medida em que você é autora de sua própria casa, que você constrói sua casa com seu esforço pesssoal durante anos, que esse esforco pessoal é superposto ao esforço pessoal da geração que lhe antecedeu, e da geração que lhe sucede, aquela casa é impregnada de valores que sao compartilhados, o que necessáriamente difere da casa que você compra com financiamento, e vende com financiamento quando quer, quando precisa mudar de emprego, quando sua familia diminui ou cresce, quando sua renda melhora ou piora.”

As políticas públicas deveriam levar essa diferença em conta, Magalhães afirma. “Trata-se de um valor contemporâneo, não moderno,” diz ele. “Moderno era pela homogeneidade, pela universalização. O valor contemporâneo prevê as difererenças.”

Pressa dos anos 1950 nos EUA

Só que os atletas, diplomatas, anunciantes, turistas, autoridades e jornalistas já estão chegando. Vem o  Papa, até.

E quem sabe, o morador de favela hoje precisa  se desapegar dos costumes antigos– e adotar a cultura mais impessoal da cidade formal. Quem sabe, é só uma questão de trocar o churrasco na lage pelo churrasco no espaço comunitário do conjunto habitacional– ou, no caso daqueles que ascendem à nova classe média, no restaurante? Pois se o que queremos é integração urbana…

Ou há algo nas favelas que vale a pena preservar? O conceito de comunidade, afinal, é central ao funcionamento pleno de uma democracia.

Terreno sendo preparado para conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida

A pressa está aí nas metas para 2016, e também na maneira pela qual as pessoas são reassentadas quando isso é preciso. Quem passa por isso reclama de uma confusão de informações e de uma falta de respeito. Pelo menos acontece um certo grau de negociação, mesmo que seja pouco eficiente ou transparente.

O estilo autoritário de alguns aspectos do processo de transformação do Rio de Janeiro suscita desconfiança. Não foi à toa que nesta semana as primeiras manchetes que se deram ao Novo Plano Estratégico enfatizavam a diminuição do tamanho do território urbano ocupado por favelas.  Logo se perguntava Quais? Onde? Como?

Há outras dúvidas. Quem define áreas de risco, e como se pode assegurar que o termo não será usado para outros fins, a não ser o de proteger o cidadão de desastres naturais? Como se certifica a qualidade e a durabilidade de construção dos apartamentos para onde milhares de moradores de favela irão morar? Quem paga a manutenção? Como se protege contra a gentrificação das favelas, e contra o empobrecimento do morador que pela primeira vez paga contas de luz, etc.? Qual será o destino do morador que precisa sair de áreas mais centrais para morar nas regiões mais baratas da cidade?

E onde acontece o debate público sobre as necessidades e sonhos dos jovens das favelas pacificadas?

No periódo pós-guerra, os países industrializados também estavam com pressa. Por vários motivos, os soldados que voltavam da Segunda Guerra não foram morar em morros, como fizeram os veteranos da Guerra de Canudos. Nem foi o caso das famílias negras que migravam do campo às cidades grandes dos EUA. Para muitas delas, veio a era da construção de enormes projetos habitacionais– que até os anos 1970  virariam enormes problemas .

Jane Jacobs, lembra Sérgio Magalhães, sábia autora do clássico Morte e Vida de Grandes Cidades (publicado em 1961) dizia que o desenvolvimento econômico não é necessariamente o parceiro da boa cidade. “Às vezes, o crescimento econômico leva à perda urbanística. Porque o dinheiro é abundante, o dinheiro  fácil dá a sugestão de grandes poderes, que pode tudo […] estamos vivendo de certo modo esse periódo [dos anos 1950 nos EUA] aqui, que tudo é possivel. Nao é verdade,” finaliza Magalhães.

Clique aqui para ver o programa de Conexões Urbanas sobre o filme 5 x Favela agora por nós mesmos

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
This entry was posted in Brasil, Transformation of Rio de Janeiro / Transformação do Rio de Janeiro and tagged , , , , , , , , , , , , . Bookmark the permalink.

4 Responses to E no palco principal, a favela!

  1. Zaida Knight says:

    Importantes perguntas. Quem pode respondê-las? Terão resposta satisfatória?

  2. Andrew Carman says:

    Daqui a pouco vou postar sobre a criacão e uso de espaço público na Rocinha. É um assunto facinante.

    Um dos objetivos do Plano Estratégico era “reduzir em 5% a área ocupada por favelas, com 2008 como ano base.” Isto é realment uma das metas ou então seria só algo que tem que acontecer para realizar outras metas? Por exemplo, o Plano vai reduzir a área das favelas porque algumas das casas estão localizadas em lugares com elevado risco de deslizamento ou outro destastre natural? Ou vão criar mais espaço público, como fizeram na abertura da Rua 4 aí na Rocinha, e como estão fazendo para criar infra-estrutura para a Copa do Mundo? Nestes casos a meta por si mesma não foi despejar as famílias, nem diminuir a área da favela, só fizeram isso para cumprir com os outros objectivos.

    Se a meta por si mesma é realmente reduzir a área da favela como é que estão explicando isto para o pessoal das favelas sendo reduzidas?

    • Rio real says:

      Oi Andrew, avise quando tiver postado! Pois é, o motivo da redução não está explicitado, pelo menos na mídia. Imagino que seja uma mistura englabada pelo termo “urbanização”, que inclui remoção e casas em áreas de risco, a abertura e espaço público, e também de melhoria de vias de acesso. A questão que mais preocupa é justamente como isto tudo está sendo e será explicado aos moradores. Até hoje a comunicação da Secretaria de Habitação é falha, pelo que se ouve de moradores que passam pelo processo de remoção.

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.