O estado de joelhos; o cidadão em pé

Audiência pública sobre invasão policial de casas no Complexo do Alemão revela incapacidade de servir e proteger o cidadão

A mesa

O livro novo do sociólogo e cientista político, Sérgio Abranches, A era do imprevisto, é teórico, cheio de conceitos abstratos. As dificuldades do leitor somem, porém, num momento como o de hoje, no meio de uma barulhenta audiência pública na Defensoria Pública estadual.

Abranches descreve nossa era de transição — socioestrutural, científica e tecnológia e climática, com esses três vertentes constantemente se encontrando como se fossem três ondas. Ele explica que o vazio que sentimos, o desespero, a desconfiança, a falta de caminho e comando — tudo isso advém do fato de estarmos transitando entre um conhecido passado firme e um futuro quase que inteiramente desconhecida.

Isso foi mais do que evidente no auditório da Defensoria Pública.

Havia por volta de trinta policiais militares sentados juntos, nas cadeiras enfileiradas, inclusive o comandante da UPP Nova Brasília, no Complexo do Alemão, Leonardo Zuma — a pessoa que, há semanas, mandou invadir algumas casas para que seus homens se protegessem de ataques de traficantes. Na mesa à frente, o subcoordenador de Polícia Pacificadora, tenente-coronel Marcos Borges. Ele fez uma explicação pelas invasões e uma promessa— recebidas com vaias fortes.

Do lado de fora, o comandante Zuma explica a invasão aos jornalistas

Mas quem falava pela Secretaria estadual de Segurança Pública, responsável pela política pública de Guerra às Drogas, por trás da violência que mata mais gente (policiais e moradores) com cada dia que passa, era uma sorridente mulher que está apenas dez dias no cargo de subsecretaria de educação, valorização e prevenção, a policial federal Helena Rezende.

Depois de ouvir uma também recém chegada representante, da secretária municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, cujo nome sua blogueira não captou (a mulher utilizou seus cinco minutos para relatar, de forma detalhada, a história de uma vítima de estupro que precisou ser removida de um hospital que ficava perto demais da pessoa que a atacara, mas havia faltado um carro, que foi, graças a ela, providenciado), dá para imaginar quantos homens brasileiros ficam inventando secretarias para juntar assuntos irritantes, para então equipá-las com pessoas de ótimas intenções e pouco poder.

Não estava presente nenhuma autoridade maior da Secretaria estadual de Segurança. Faltaram também — foram convidados — os secretários estaduais de Cultura e de Educação, apesar de vários espaços educativos e de cultura terem sido abandonados no Alemão, de acordo com moradores. Mariluce Souza, que dá aulas de arte para crianças, conta que as constantes faltas de alunos da rede pública, por causa de tiroteios, resultam em perda de vaga– sobretudo em creches.

Essa não é a primeira audiência pública para falar dos problemas no Alemão. Houve uma no proprio local, dois anos atrás — quando também aconteceu um bem moderado diálogo entre moradores, ativistas e policiais. A morte do menino Eduardo foi o estopim, na época.

Hoje, com níveis de violência maiores, o teleférico parado e policiais com salários em atraso, a tensão fica quase insuportável: “Não vamos denunciar a polícia para a polícia! A polícia não investiga a polícia!” berrou o ativista e morador Raull Santiago, em resposta à oferta do tenente-coronel Marcos Borges para ouvir qualquer denúncia ou reclamação.

Diálogo não houve. Enquanto a Defensoria e a ONG Anistia Internacional classificaram as invasões das casas como inconstitucionais e portanto, ilegais, a polícia dizia ter precisado dos locais para se abrigarem enquanto uma base blindada não chegasse. A base chegou hoje; daí veio a promessa de sair das casas amanhã.

Ovo ou galinha?

Enquanto a polícia dizia que as casas eram abandonas e, assim, livres para sua utilização, moradores diziam ter tido que abandonar as casas por causa dos tiroteios, que objetos seus foram danificados. Queriam indenização.

Teresinha, mãe do menino Eduardo, baleado pela polícia há dois anos na porta de casa enquanto brincava com um celular, teve sua vez ao microfone. Seguiu-se um foz de Iguaçu de sentimentos e reflexões sobre sua tragédia, infelizmente compartilhada por muitos familiares nas favelas do Rio. “Eu não acredito na polícia!” afirmou repetidamente.

Luciano, morador, desafiou algum policial a levantar a mão e dizer que estava satisfeito com o emprego e as condições de trabalho. Ninguém levantou a mão. “A UPP fracassou por causa da corrupção do PMDB nesse estado”, acusou. Recomendou que os policiais de UPP cruzassem os braços.

Mariluce, culpando o governador Pezão e os fabricantes de armas, lembrou que balas voavam no Alemão enquanto a audiência acontecia, no centro da cidade. “Quem garante que vamos chegar em casa?” perguntou (às 21h30 avisou ter chegado bem, relatando que os tiros haviam parado uma hora antes).

Nestas casas, diz a Mariluce, moram pessoas: fato básico

Enquanto os moradores diziam ter filmado abusos policiais (que farão parte de um dossiê), um policial — adepto à crença de que todo mundo precisa escolher um lado, perguntou por que os moradores não usavam as técnicas de filmagem com os traficantes. À boca, acrescentou, ninguém pede indenização.

A gritaria começou: “O imposto paga a polícia, não paga o traficante”, argumentou um membro do público, enquanto outros berravam em coro, “assassinos!”

A essa altura, Raull Santiago, cujo grupo Juntos Pelo Complexo ajudara a organizar o encontro, já abandonara a mesa. Os policiais também se debandaram. Um círculo denso se formou do lado de fora do auditório, perto dos elevadores: jornalistas e policiais. No centro, o comandante Zuma explicava sua invasão, apontando um dedo mas sem grande convicção: “Como lá há várias casas abandonadas, todas crivadas de bala, porque o morador não consegue morar lá, eu autorizei que [policiais] ficassam dentro de uma casa vazia, para que pudessem se proteger à noite. Foi isso que autorizei. E isso estou junto com o Ministério Público tentando me justificar. Eu coloquei a minha carreira em risco autorizando isso, eu sei. Mas foi para guarnecer a vida deles”.

E aí temos quase todos os elementos da travessia que vivemos, conforme explica Sérgio Abranches no seu livro: instituições fracas, confiança abalada, suposições desafiadas, prioridades morais contestadas, líderes ausentes. A lista é longa. O futuro está na penumbra. Há pouca consolação — de primeira vista.

Vamos lembrar, porém, que essa história caótica envolve um grupo de moradores que se organizou para pressionar uma polícia que eles vêem como injusta. Dispõem de informação, da capacidade de formar redes virtuais e reais, de vigiar seus supostos abusadores como nunca antes. A polícia, enfim, disse que vai se retirar das casas; o comandante, pela fala, reconhece a necessidade de se justificar– para uma instituição, o Ministério Público, que ganha importância no país como um todo ao passo que políticos perdem centralidade.

Tempos incertos, tempos novos, levando sua blogueira a lembrar de uma notícia que faz parte das nossas tentativas humanas de nadar no meio dessas três ondas que batem e se debatem. Existe uma nova maneira de fazer uma lei no Brasil: o aplicativo Mudamos, desenvolvido aqui no Rio pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade. O fato que o Mudamos teve 300 mil downloads em uma semana demonstra uma grande vontade de, justamente, mudar o que não serve mais. Dá uma olhada!

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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2 Responses to O estado de joelhos; o cidadão em pé

  1. É muito simples: enquanto não houver mesa de diálogo e negociação, não vai se chegar a lugar algum. Levar policiais estressados para ficarem ouvindo num auditório e no fim começarem a ser chamados de assassinos, entre bandeiras e cartazes, simplesmente não funciona.
    Navalha de Ockham: se a intenção é chegar a um consenso, se faz com diálogo.
    Se não se faz com diálogo, a intenção é fazer protesto. E aí isso pode ser feito em qualquer lugar, sem que os policiais deixem seus postos de trabalho para tal.

  2. Rio real says:

    Gustavo, concordo. Os tempos, no mundo todo, não são de diálogo, muito infelizmente.

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