Travessias no Galpão Bela Maré: mostra pioneira
Enquanto toda espécie de orgão e instituição, samaritano e otimista corre para ajudar nas recém ocupadas favelas da Rocinha e do Vidigal, na outra ponta da cidade acontece uma corajosa inciativa de vanguarda.
“Não entro não, está em conflito,” diz um motorista de táxi, ao deixar uma passageira na esquina da rua Bitencourt Sampaio com a avenida Brasil. É aqui, logo antes da passarela 10, que começa a favela Nova Holanda, uma das 16 comunidades do Complexo da Maré. Nesta semana, um homem que voltava do ponto de ônibus onde com todo o cuidado deixara a esposa, morreu numa troca de tiros entre traficantes e policiais civis, que preparam o terreno para a próxima UPP do Rio de Janeiro.
Localizado nos fundos da baía de Guanabara, o Complexo abriga pelo menos 130 mil moradores, entre os quais facções de narcotráfico e milicianas. Vizinha do campus do Fundão da UFRJ, é uma das regiões mais bem organizadas da cidade; as ONGs Observatório de Favelas e Redes de Desenvolvimento da Maré aqui tem suas sedes.
A longeva violência no local foi um dos motivos pelo abandono de dezenas de galpões industriais pela avenida e suas adjacências. Agora, exatamente um ano depois da histórica invasão do Complexo do Alemão pelo Exército, esse triste visual pode estar começando a mudar.
“O galpão ficou uns quinze anos fechado,” diz Fred Coelho, um dos curadores da mostra Travessias, que abre, na verdade, a apenas alguns passos seguros da avenida Brasil– no dia 26, sábado, às 16 horas. Com duração até o dia 18 de dezembro, a mostra inclui uma exposição, intervenções urbanas, vídeos, performances, oficinas, palestras e festas.
Além de Coelho, a mostra tem curadoria de Daniela Labra e Luisa Duarte. Os patrocinadores são a Petrobras e a Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, via Lei do ICMS.
Apoiado pelo Observatório de Favelas e Vik Muniz, um grupo de artistas já pagou um sinal pelo galpão na foto acima, batizado Galpão Bela Maré, de R$150 mil. Faltam mais R$ 120 mil para que essa mostra seja o começo de uma relação frutífera entre a bela arte visual brasileira e um dos ambientes mais degradados da cidade.
Ontem, artistas e curadores montavam suas obras. Davi Marcos pretende espalhar quatro fotografias gigantes nas ruas próximas da favela. Criado no conjunto habitacional do outro lado da avenida Brasil, ele é o único artista local dos expositores. Já ajudou a formar dezenas de fotógrafos, nos cursos oferecidos pelo Observatório.
Comentando que o local é perigoso apenas quando há policiais na entrada da favela, sinalizando uma incursão, Marcos vê a mostra como uma chance de “trazer a presença da arte, com gente renomada mundialmente, para um espaço que a mídia e a sociedade [ignoram]”.
Marcos também fez uma brincadeira nostálgica e fotográfica com o ex vigia e funcionário da fábrica, que mostrou para ele como operar uma das muitas máquinas largadas ali.
Os outros expositores são Alexandre Sá, André Komatsu, Chelpa Ferro (Luiz Zerbini, Barrão e Sergio Mekler), Eli Sudbrack (AVAF), Emmanuel Nassar, Filé de Peixe (Alex Topini, Fernanda Antoun e Felipe Cataldo), Henrique Oliveira, Lucia Koch, Marcelo Cidade, Marcos Chaves, Matheus Rocha Pitta, Michel Groisman, Raul Mourão, Ricardo Carioba, Rochelle Costi, e o Coletivo Pandilla Fotográfica.
Pela primeira vez, Raul Mourão criou suas esculturas cinéticas com a técnica construtiva de tubos de aço e braçadeiras, em vez de barra maciça e solda elétrica. A equipe de montagem costuma fazer arquibancadas. “Normalmente trabalho com ângulos retos,” diz um engenheiro durante o teste no galpão vizinho, que é fruto de uma parceria da ONG Redes com a Lia Rodrigues Companhia de Dança. “O diagonal complica.”
Depois da visita, não é nada complicado subir a passarela que atravessa a avenida Brasil, para pegar uma condução de volta à Zona Sul. Ao fundo musical de um CD pirata, passando por quiosques que vendem balas e lanches, cria-se um caminho ziguezague entre uma legião de pedestres: um rapaz que conduz sua bicicleta, um casal que levanta o carrinho do bebê para descer as escadas; um homem que volta do trabalho, a marmita vazia dentro de um saco plástico. O chão é de tábuas de madeira meio soltas, e quando menos você espera, se dá conta de que está numa posição dominante, por cima de uma larga avenida que zune vertiginosamente, o cheiro de esgoto chegando vagarosamente do outro lado da via.
E o ângulo mudou.
Clique aqui para ler um texto sobre memórias e planos para o futuro, de Davi Marcos.