Anunciada às pressas, sem cobertura de imprensa tradicional

Adelson Guedes, representante de uma favela com grande população de origem nordestina, presente na audiência pública no centro da cidade
“Ficção favelistica”, denunciava o morador, parte de um grupo ostentando chapéus de couro no estilo Lampião.
Descrevia um filme sobre propostas de melhorias urbanísticas, de saneamento, acessibilidade, mobilidade e moradia. As propostas fazem parte de um projeto estadual de R$ 1,6 bilhões para a favela da Rocinha, o PAC II, prestes a ser submetido à agência federal que irá custeá-lo, a Caixa Econômica Federal.
Outro morador lembrava que estamos em época eleitoral, que no PAC I houve a promessa de saneamento, não cumprida, enquanto se construía uma passarela, um complexo esportivo e uma biblioteca.

Dennis Neves, que diz ter idealizado a marcha de protesto em 2013, de moradores da Rocinha até o apartamento do então governador Sérgio Cabral
“A gente deixa de acreditar nas coisas que são apresentadas,” reclamou.
Ontem, num auditório mal conservado de um prédio de escritórios do governo estadual, no centro da cidade, uma audiência pública obrigatória, de quatro horas, mostrou as dificuldades de aprofundar a democracia brasileira.
Anunciada no Diário Oficial durante a Copa, com menos de uma semana de antecedência, a audiência quase encheu o pequeno auditório. Estavam presentes lideranças variadas da Rocinha e de São Conrado, o bairro formal que vive em simbiose com a favela — que abriga 100 mil moradores de acordo com o IBGE, ou o dobro disso, de acordo com alguns moradores que afirmam que o último censo negligenciou muitas casas.

O sanitarista Ernani Costa, o presidente da EMOP, Ícaro Moreno e Ruth Jurberg, coordenadora do PAC II
Não se via (ou pelo menos não se ouvia) ninguém do governo municipal, que terá que assumir a manutenção de parte das obras, depois de prontas. Apesar da presença de vários fotógrafos, hoje a única matéria que se encontra na imprensa é o relato de um morador da Rocinha.
Quatro dias antes da reunião, O Globo previa que a audiência iria “pegar fogo”. Aquele fogo fora, porém, apagado previamente, pois a Empresa de Obras Públicas do Estado, a EMOP, decidira dias antes que o “crime ecológico” — a utilização de parte de uma Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) para a construção de prédios de apartamentos para os moradores realocados da Rocinha– não iria mais acontecer. Isso, apesar de Ícaro Moreno, presidente da EMOP, argumentar que a ocupação ordenada preserve mais o meio ambiente do que uma inevitável ocupação desordenada.
Na ausência do fogo, houve vaias e palavras de ordem. Moradores da Rocinha acusaram os vizinhos de São Conrado de não querer conviver com a favela, cujos limites entraram na discussão.
Depois do filme, Ruth Jurberg, coordenadora do PAC II, fez uma apresentação em Powerpoint (veja : APRESENTAÇÃO_PAC2_14-07-14-R02). Teria sido útil se as informações detalhadas tivessem sido disponibilizadas com antecedência, pela Internet. Notavelmente, apenas uma pessoa reclamou dessa falta.
Muitas duvidas se expressaram: se as famílias removidas ou realocadas (a palavra varia, dependendo do ponto de vista politico de quem fala) pelo PAC II iriam ser adequadamente abrigadas, em moradias existentes ou novas; se o saneamento proposto realmente atendia à favela (e à cidade, pois o projeto, como apontou a deputada estadual Aspásia Camargo, não engloba o impacto ambiental de levar uma quantia considerável de esgoto adicional para a região das ilhas Cagarra, por meio do emissário submarino, cujo funcionamento foi criticado justamente ontem em matéria de uma página do jornal O Globo).
O projeto visa, ao incluir passarelas e um sistema de teleférico, a ligação da Rocinha ao sistema do Metrô. Não se falou, porém, sobre o impacto geral na cidade, do fluxo adicional de passageiros (não estava presente ninguém da concessionária). Durante uma audiência pública sobre a extensão linear do Metrô (em vez de fazer uma rede de linhas), há mais de dois anos, perguntava-se se os vagões do Metrô não chegariam a Ipanema já cheios, na hora do rush, de passageiros vindo da Barra da Tijuca. Na época, a Rocinha não fazia parte do traçado.
Na base apenas das informações apresentadas ontem, é impossível fazer uma análise redonda do projeto. Como avaliar as atuais necessidades e desejos dos moradores? Como saber se estão bem representados na audiência? Há muitas divisões na favela, cuja população equivale a uma cidade.
Existe um Plano de Desenvolvimento Sustentável, elaborado pelo governo em conjunto com moradores, mas foi lançado, em forma de livro, há dois anos — e a versão eletrônica não está amplamente disponível. Assim, apesar de uma detalhada apresentação (veja: ppt_2014_07_02_R02) pelo sanitarista Ernani Costa, fica difícil avaliar, por exemplo, os 11.300 metros de extensão da rede de esgoto no contexto da demanda total. Como ficará o esgoto da Rocinha? Como ficará a praia de São Conrado?
Pelo que Costa disse, a coleta de esgoto não será a partir das casas individuais. Em vez disso, a tubulação instalada irá coletar aquilo que jorra pelas ladeiras da favela em valas abertas e enviá-lo, sem tratamento, para o mar. Pouco tem a ver com o que os moradores gostaria de ver – e pode ser, simplesmente, uma tentativa de reduzir a oposição ao sistema de teleférico.

Guilherme Pimentel, coordenador de campanha do grupo de ativismo digital e real, Meu Rio, faz suas perguntas
Moradores da Rocinha disseram ter preferido que a audiência tivesse acontecido na própria favela. Para eles, o local escolhido demonstrava uma falta de respeito e atenção (mesmo sendo que a Rocinha já acolhera muitas reuniões sobre o futuro da comunidade).
Porém, não foram eles que reclamaram de algo possivelmente bem mais sério: a falta de disponibilidade de informações pela internet. Sem elas, o preparo de qualquer participante fica a desejar.
E Guilherme Pimentel, do Meu Rio, não parou nesse quesito. Questionou se a audiência teria legalidade, pois talvez a pressa de realizá-la tenha encurtado prazos. Sob a coordenação dele, Meu Rio faz uma campanha contra o teleférico na Rocinha, e a favor do saneamento.
Audiências públicas são eventos complexos. A de ontem preocupa bastante pela falta de confiança e preparo, pela dificuldade que todas as partes demonstram na resolução de conflitos e no trabalho pelo bem comum, e pela ausência da prefeitura, do Metrô e da imprensa tradicional, sendo que esta última poderia acrescentar uma visão isenta e tecnicamente bem embasada.
Será importante, para todos, acompanhar a avaliação do projeto pela Caixa Econômica, e sua execução durante os próximos anos.
E, enquanto aguardamos o PAC II e as eleições de outubro, que tal rever as promessas do nosso último governador?
Ótimo post, Julia. Quantas vezes já vimos este filme?
tem que mudar! obrigada, Liz, saudades–
Pingback: Política Brasileira » Anunciada às pressas, sem cobertura de imprensa tradicional