Proposta para um Rio seguro: tecnologia — ou fuga do contato humano?

Será que dá certo?

Meninos de uma das favelas do Complexo do Alemão assistem, no Dia das Mães, a testemunhos de mães que perderam filhos a tiros de policiais

O governador eleito Wilson Witzel afirmou desconhecer a favela da Rocinha, numa entrevista publicada no jornal O Globo deste domingo. “Passei perto da Rocinha, nunca subi. Mas a gente não precisa subir para saber que lá realmente é ruim”, disse.

Witzel não amenizou a fala: deixou de dizer se conhece pessoalmente alguma outra favela. Não disse o que, exatamente, seria ruim na Rocinha. Declara também que vai abrir ruas nas dez maiores favelas do Rio.

No Censo de 2010, soubemos que pouco mais de dois milhões de pessoas da população do estado, na época quase 16 milhões, moravam em “aglomerações subnormais”, ou seja, favelas. Estamos falando de 12,5% da população. Com a crise, é possível que o número seja maior hoje.

Difícil dizer se o novo mandante jamais tenha pisado em beco ou viela de áreas informais do estado que irá governar (esbarrando com ele num restaurante semana passada, onde jantava numa mesa de companhia exclusivamente masculina, sua blogueira pediu entrevista; Witzel jurou que 50% do secretariado será mulheres e deu prioridade à transição). Não que beco sirva para plenamente entender favela nem as vidas de seus moradores, como o blog constatou em 2014.

Apenas pisar em favela, como muitos policiais de UPP devem ter descoberto, tampouco leva à queda definitiva dos níveis de crime e violência. Pacificação, como foi implementada nas favelas da capital, não chegou a ser policiamento de proximidade, como se cogitou originalmente, nos idos de 2008.

Houve jogos de futebol e bailes de debutante, sim. Houve amizades e trocas bonitas entre moradores e policiais de UPP. Faltou, porém, desenvolver protocolos e estruturas duradouras para a resolução pacífica de problemas — para prevenir a violência e instituir formas justas e democráticas de se comportar, tanto do lado policial quanto do lado dos moradores. Faltaram trocas e trabalhos em conjunto que construíssem confiança. Moradores comentaram evitar contato com os policiais de UPP.

Pelo que sua blogueira observou e ouviu nos últimos oito anos de cobertura da área de segurança pública, nas favelas “pacificadas” faltou orientação com respeito ao vácuo de poder deixado por traficantes. Em geral, comandantes e comandados preenchiam esse espaço regulatório da maneira que bem entendiam. Frequentemente, em vez de envolver comunidades na criação de novas maneiras de resolver problemas, mais democráticas, reproduziam o padrão anterior instituído por traficantes — de autoridade máxima e inquestionável. As armas continuaram a mandar.

Policiamento de proximidade implica uma perda de controle, alguns pensarão. Não é o caso, se houver protocolos, capacitação e monitoramento adequados. Se tivéssemos tido a chance de viver o verdadeiro policiamento de proximidade (como acontece em muitas cidades do mundo), a pacificação não seria o fracasso que acabou sendo. Teria sido inovadora, reduzindo o crime de forma sustentável, abrindo o caminho a outras políticas públicas que aproximam as pessoas, com uma gama de resultados positivos para toda a sociedade. Afinal, quem sofre mais com o crime é a população de baixa renda.

Policiamento de proximidade não resolve tudo. Witzel acerta quando diz que precisamos de maior firmeza contra o crime. Mas a polícia do Rio está mal equipada, conforme relata esse post. Aliás, a receita para reduzir a violência no Rio não é segredo. Especialistas recomendam medidas sofisticadas, como capacitar, equipar, remunerar, controlar e administrar melhor as polícias; utilizar inteligência e informação de forma efetiva; integrar o judiciário e as penitenciárias como atores em políticas de segurança pública e aumentar o papel federal no controle e sustento desta questão chave da vida nacional. É de se esperar que a Intervenção Federal tenha avançado em algumas destas áreas (apesar de um aumento no número de mortes). Não sabemos se é o caso nem se o futuro governador já conversou com os generais aqui.

Se Witzel desconhece a Rocinha, palco intermitente, há décadas, de batalhas entre grupos de traficantes e entre esses e policiais, quem o está assessorando sobre favelas e segurança pública? Sílvia Ramos, especialista fundamental na área, não sabe. O Instituto Igarapé, ator de peso em qualquer debate sobre o assunto, não está envolvido, de acordo com Rob Muggah, um dos fundadores. Ignacio Cano, estudioso que fez importantes consultorias para a Polícia Militar fluminense, tampouco: “Acho que [ele] tem ideias próprias e um grupo de oficiais de opinião semelhante às dele”, completa.

Um especialista em segurança no Rio, que preferiu não ser identificado, explica ser comum alguns juízes viverem cercado de oficiais de polícia. Policiais lotados no Poder Judiciário, acrescenta, por vezes constroem relações de familiaridade com os juízes que protegem. Resolvem problemas, trocam ideias, homenageiam com medalhas, estendem convites para visitar estande de dar tiro ou fazer cursos no BOPE ou na CORE. “É uma espécie de lobby, na melhor das hipóteses”, acrescenta.

O viés tecnológico das propostas de Witzel — franco atiradores e drones sobrevoando favelas, alvejando quem carrega fuzil — sugere uma assessoria de visão limitada. Como fizeram durante os anos de pacificação, traficantes não irão se adaptar à nova realidade de serem alvos ambulantes? Naquele tempo, continuaram com os negócios, de forma low-profile, ou fugiram para outras cidades do estado, espalhando violência para a Zona Oeste e a Costa Verde. Nem todos irão ser “abatidos” como Witzel gosta de dizer. O que acontecerá se traficantes usarem moradores comuns como escudos humanos, para se movimentar nos seus territórios?

A decisão de implementar as propostas high-tech, se tomada, responsabiliza o morador comum de favela pelos riscos que corre no seu dia a dia. Será como se o resto da sociedade brasileira nada tem a ver com a pobreza que levou esses dois milhões (no Rio) a morar fora do asfalto, suprindo, nas grandes cidades, mão de obra barata. Formaliza-se a condição de morador comum como civil numa guerra, dano colateral.

O autoritarismo limita — e bloqueia — relacionamentos entre as pessoas. Reforça bolhas. Minimiza a necessidade de gastar sola, de criar conexões com pessoas e lugares fora destas. O desconhecimento do território, Witzel se arrisca a descobrir, pode levar a mais um fracasso na segurança pública do Rio de Janeiro. Periga incentivar, como o mundo já viu em Los Angeles e nos subúrbios de Paris, mais violência, mais raiva, mais mortes.

E a repressão ao tráfico? O foco principal tem que ser na inteligência: as ilegalidades na aquisição e no transporte de armas e entorpecentes. Ou seja, na corrupção dentre as próprias instituições de estado. Aí, drones e franco-atiradores serão supérfluos.

About Rio real

American journalist, writer, editor who's lived in Rio de Janeiro for 20 years.
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