Prólogo de Farsa ou Tragédia?
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O Rio mudou enormemente, somente nos últimos quatro anos. Graças ao crescimento econômico, aos investimentos e à pacificação, a cidade talvez esteja mais integrada e vibrante do que nunca. Cariocas de todas as classes estão mais à vontade que antes para se deslocar e experimentar uma ampla variedade de experiências culturais, para investir nos seus sonhos, e para firmar novas parcerias.
Em 2010, Sérgio Cabral foi reeleito governador e, neste ano, o prefeito Eduardo Paes também recebeu uma esmagadora demonstração de apoio. Obviamente, a maioria dos cidadãos, tanto do estado do Rio de Janeiro quanto da capital, apoia a continuidade, a consolidação e o aprofundamento das políticas urbanas desses governantes.
À medida que o contexto geral melhora (com exceções e retrocessos), cariocas empenhados, visionários e criativos têm feito muito para contribuir para o difícil processo de integração urbana.
É digno de nota que os candidatos para este ano da premiação Faz Diferença do jornal O Globo incluem Raquel Rolnik, relatora especial da ONU para moradia adequada, que já criticou a política municipal para remoções; a inovadora FLUPP, ou Festival Literário Internacional das UPPs, organizada por Écio Salles, Toni Marques e Júlio Ludemir; a novela Avenida Brasil, que revelou para uma audiência nacional aspectos da vida no Rio de Janeiro; Marcus Faustini, criador do revolucionário programa para jovens em favelas pacificadas, Agência de Redes para a Juventude; o think tank ultraessencial Observatório de Favelas de Jaílson da Silva e Souza; e a ArtRio, a extremamente bem sucedida e nova feira de arte no cais.
Em comparação, os homenageados do ano passado foram o empresário e filántropo Eike Batista, Carlos Saldanha, criador do filme de animação “Rio” e Tião Santos, catador de lixo descoberto pelo artista Vik Muniz em seu filme Lixo Extraordinário. Em 2010, os prêmios foram para José Mariano Beltrame, René Silva, Viva Rio e José Padilha.
No mês passado, o RioRealblog relatou uma nova estratégia para administrar as demandas sociais da cidade, o que pode ser um bom presságio para o aspecto mais problemático da transformação do Rio.
Com tantas atividades e avanços, é fácil pensar que tudo vai maravilhosamente bem no balneário mais animado do mundo. Porém, as almas inquietas devem prevalecer, principalmente por ontem ter marcado o aniversário de um ano da morte de André Urani, instigador do RioRealblog.

André Urani
Deste modo, segue uma lista de afazeres para todos nós (e, por favor, comente, pública ou privadamente, se você tiver informações, pistas, perguntas adicionais ou itens, contatos, etc.):
Morar Carioca: Quais são os objetivos, o orçamento e o cronograma do programa? O que foi realizado até o momento e o que ainda precisa ser feito? Será atingida a meta de urbanizar todas as favelas do Rio até 2020? Como se define urbanização? Ocorre que tipo de participação comunitária? Qual órgão é responsável e quem o fiscaliza? O que o Banco Interamericano de Desenvolvimento, que custeia o programa parcialmente, tem a dizer a respeito? Há coordenação com o programa federal do PAC, que é responsável por ações de urbanização na Rocinha, em Manguinhos e no Complexo do Alemão? E o que exatamente o PAC tem feito? Há compartilhamento de metodologia e dados entre essas duas esferas de governo? O Comitê Olímpico tem alguma função no programa Morar Carioca?
Saneamento, tanto em favelas quanto em áreas formais da cidade: como são alocadas as responsabilidades? CEDAE, Rio Águas, PAC? Qual é o custo e qual o cronograma para a coleta e tratamento de todo o esgoto no Rio? Quais favelas já têm coleta/tratamento de esgoto e o que precisa ser feito para integrar todas elas ao sistema? É verdade que 70% do Rio de Janeiro não tem saneamento adequado? O que podemos fazer para melhorar a coleta de lixo nas favelas, o que ainda é um problema em muitos lugares? Há uma força tarefa focada em saneamento? Caso a resposta seja negativa, por que não?
Gentrificação: Como pode ser estabelecido um diálogo entre moradores, governo e outros interessados, para definir quais aspectos da vida nas favelas da Zona Sul podem e devem ser preservados? Como isso pode ser feito e quem deve fazer isso? Vamos simplesmente deixar que a gentrificação aconteça?
Remoções: Quem determina as políticas de remoção e os procedimentos da Secretaria Municipal de Habitação? Há fiscalização e governança adequadas para garantir que os direitos dos moradores são respeitados? Os moradores estão sendo realmente removidos para áreas próximas de onde eles moravam, como a prefeitura diz?
Sustentabilidade financeira da pacificação: Quanto a pacificação custa e quem paga por ela? Qual é o orçamento para os próximos anos? Os desembolsos podem ser mantidos, enquanto necessários? Quem definirá isso e como será decidido?
Área portuária e moradia de renda mista: O que aconteceu com a proposta de moradia de renda mista apresentada pelos estudantes da Universidade de Columbia a pedido da Secretaria Municipal de Habitação? Como podemos avaliar os planos atuais para o porto no que tange à saudável mistura de rendas e de uso fundiário, conceito ensinado por Jane Jacobs aos urbanistas na década de 1960? É tarde demais para incluir isso?
Memorial de escravidão: o Cais do Valongo, pelo qual uns 900 mil escravos passaram entre 1758 e 1843, já foi escavado e preservado, e agora pode ser visitado. O Rio de Janeiro terá um memorial a essas pessoas, às suas origens e aos seus descendentes? O escritor Alex Castro compara a escravidão ao Holocausto, aqui.
Acesso à luz e água: grande parte da população carioca não conta com suprimento seguro de luz e água. Alguns moradores de favelas pacificadas dizem que falta mais a luz agora, do que na era dos gatos. O que acontece? O que está sendo feito para remediar a situação?
Educação: Existe uma avaliação independente do trabalho em curso, nas esferas municipal e estadual, para melhorar a educação? Se não, quais dados oficiais, conclusões e recomendações estão disponíveis? Quais planos e orçamentos estão em vigor?
Saúde: Existe uma avaliação independente do trabalho em curso, nas esferas municipal e estadual, para melhorar a saúde? Se não, quais dados oficiais, conclusões e recomendações estão disponíveis? Quais planos e orçamentos estão em vigor?
A negligência pública dessas questões pode deixar truncada a transformação do Rio . A sociedade civil deve atuar mais do que tem feito até agora . A imprensa brasileira precisa largar os viés de longa data e contribuir de verdade ao processo de transformação urbana – com foco nítido e amplo no bem comum.
Como James Madison, quarto presidente americano, escreveu em 1822:
Um governo popular sem que a população tenha acesso à informação ou aos meios para adquiri-la não é nada além de um Prólogo para uma Farsa ou para uma Tragédia; talvez, ambos. O conhecimento sempre governará a ignorância: e um povo que pretende ser seu próprio governante precisa se armar do poder que o conhecimento oferece.
Tradução de Rane Souza